30 de mar. de 2018


o passado persistente
sempre soube pôr a culpa
no olhar que desistiu
de querer olhar pra frente

receita


a leitura era clara
diagnóstico e prognóstico exatos
mas papel após papel
faltava-lhe saber escrever
na receita médica

--mais por imperícia
do que por possuir
incompetentemente
caligrafia legível--

algo útil para sua
automedicação

29 de mar. de 2018

despejo


aceitem as lágrimas
morar nos bastidores da cara
e lustrem-se as máscaras
que é o que convém
como fachada
para dor

stratus


passam nuvens brandas
ora acinzentadas
ora quase nuas
sem dizerem nada

passam sobre mim
que sou parte água parada
parte tentativa de mover algum moinho

deve ser muito necessário
vencer alguns tantos infernos
até ter atravessado
o caminho inverso das chuvas

passam sobre mim
só pra se mostrarem
menos pesadas
só pra que digam que já fui
qualquer passado
sem terem dito nada

28 de mar. de 2018

papel


gente dura
e é bem do tempo
dar as chances

promissórias de vida
firmadas em papéis
a serem pagas
deus sabe

gente dura
mais fácil ser eu
papel

maleável, amarelo
mas exerço meu ser
e tenho costume
de durar mais que
gente dura

27 de mar. de 2018

peles


tantos tons
passam invisíveis
como se a luz cegasse
--ou a tocar se negasse--
como se nossos dias
não passassem
de uma noite
sem fim

saúde!


até mesmo poeira inspira
poeta a espirrar
poesia

26 de mar. de 2018

elo


pai
perdoa-lhes
eles não sabem
o que elas fazem

precipitação


a chuva
arremessa
na corrente do rio
a fruta quase madura
que berra em silêncio
enquanto corre corre
e ninguém escuta
porque só ouvem
salvas de palmas
da chuvarada
na palma
do rio

ligeira


passa a mão
em tudo que é passageiro
corpo, trabalho, fama, dinheiro
e quando vai se dar conta
que só a alma participa dos eternos
a mão débil já nada alcança
esta miserável
passageira

lasquinê


cheio de dó de si
cantarolava a vida
numa triste canção
de melodia viciada
nota depois de nota
como se colasse pedras
tentando ligar duas pontas
no seu tabuleiro em dó menor

25 de mar. de 2018

insípido


não sei se sairá facilmente
da boca e da mente
este dissabor

aquele gosto amargo
do arrependimento
daqueles encontros vãos
onde cansou de se perder de si
já está dissipado
ponto

não sei se sairá facilmente
este dissabor
do arrependimento
daquele desencontro consentido
--de nada adiantou o tanto
que negou-se a consentir--
de onde saiu perdido de si
e sem gosto

poço


esse chuvisco
essa chuva hesitante
essa goteira acanhada
(pouca vontade?)
acaba encharcando-a

24 de mar. de 2018

blá


sofisticadas palavras
sofismas às vezes
--ai de mim--
e mais nada

atravessado


alegre-se, sim, com a porta
que sua mão alcançou abrir
mas, saiba, portas não se resumem
a coisas de abrir ou coisas de fechar

essa sua utilidade seria imbecil
e imbecil seria quem reduzisse
as portas a isso apenas
--daí a mensagem que trago--

pensando bem, desconsidere! esqueça!
anule tudo o que acabou de dizer
este imbecil que reduziu seu coração
a pulsos abertos e pausas fechadas

às penas


ah, poetas
façam-me o favor
escrevam só coisas banais

esqueçam essas coisas que doem aqui
à medida que o papel dói-se
rasgado e sangrado pela pena

tenham pena dos que têm coração
logo abaixo desse imaturo peito-papelão
pelo amor... pelo amor do meu

23 de mar. de 2018

mudos


o mundo calado
só os dois dialogando
apenas café como mediador

o mundo girando
os dois aos sussurros
um vinho e mais nada como divisor

polarizado, um mundo a berrar
mas entre os dois só pele e pouquíssimos panos
--já nem coisa alguma carecem falar--

nua


teciam-lhe comentários
mas sua alma
--sempre desnuda--
seguia recusando
vestimentas quaisquer

estado


“pelo visto
você está bem melhor”

pelo não visto
é como de fato
eu estou

22 de mar. de 2018


saudade é barco
que mesmo em mar calmo
sempre faz balançar

none


alguém me acuda
não sei como é que cuida
dessa coisa que nasceu em mim

porque dizem que se arranco
pode doer, doer, doer
deixar cicatriz medonha
e nunca mais voltar a nascer

alguém me livre disso que a mim consome
ou --querendo-- alimente
e aproveite e lhe dê um nome
porque de nomes já esqueci até do meu

20 de mar. de 2018

vernal


parece que era a tarde que me chamava
e eu, tardio como as folhas desta estação,
também não quis conservar meu direito
de ser sempre verde

e fui
--mesmo descrente de tudo
nunca descrente do voo--
cego

e dei por mim
que ventos não sabem brincar
com quem não tem asas ou pipas

para a primavera prometida
para novamente ser verde
para querer --uma só vez-- ter asas
ou voar pela última vez pelas pipas
parece que era tarde

19 de mar. de 2018

tudo bem?


tudo.
resposta irretórica
para a maior pergunta retórica
que pode haver

encontrado


se alguém avistar
algum de mim
--melhor ou pior--
vagando por aí
diga que estou bem
aqui, perdido

ativas ou ações


que ela não tenta ser feliz
ninguém pode dizer

tenta

e é propriamente
pra ser feliz
--mesmo que de ti
depois se arrependa--
que ela te tenta

ágora


leve-me de pronto
tempo
até a entrada
da definitiva praça
onde só eu entre
enquanto você
do lado de fora
compreende-me
finalmente livre

radicados


era como seus dias acabavam:
pregados em pontos distantes do mundo
sabendo somente esperar outro dia
onde essas pontas pudessem se unir
ou o mundo de vez se fizesse acabar

16 de mar. de 2018

menina


é com menina que retina rima
é na pupila que a menina mora
no seu olhar o meu olhar demora
mas aos seus olhos
nem sei quem eu sou

tropical


quase nunca sabem ser água
as águas dos desertos
e sertões

quase nunca sabem ser líquido
os líquidos de geleiras
e polares

nunca soube ser tropical
a água de meu peito
sempre confusa
em tantos estados
--mesmo sendo--

13 de mar. de 2018

deslize


todo ano a mesma chuva
tirando à força lá do morro
vidas construídas sem vistoria
nivelando por baixo minha cidade
mas nos deixando agradáveis cá no topo

todo ano o mesmo choro
e todo ano morro um pouco
bem tranquilo
em meu conforto

la mirada


na morada dos teus olhos
não me abrigo à sombra
habito a própria luz

jogada


estabeleceu regras
determinou fases
criou obstáculos
o amor virou um jogo
e o jogo acabou virando

dissolvendo-se
perdeu

12 de mar. de 2018

mito


permito-me
mas não atendo aos requisitos
e sobrevivo proibido

duto


a lei parece ser esta:
eu me deterioro, apodreço e me anulo
e sobre o húmus que me torno
cresce o que há de melhor
de mim sem ser meu
só porque sou eu

11 de mar. de 2018

casa


de fora
um lar bonito
por dentro
labirinto

achava ter se perdido
mas encontrava-se em casa
e encontrava-se em cada parede
na imagem de espelhos espalhada

9 de mar. de 2018

desproporção


até entendo teu não
fiquei só sem entender
aquele tanto de sim

haicai xiii


em todo intervalo
caídos e distraídos
não ouvem, mas falo

presa


quer porque quer ser mar
com águas quaisquer
de qualquer rio

mas mar não nasce
mar mais represa
do que se deixa represar

liquide-se
ou contente-se em ser
quem sabe o monte
que provê o rio
que se sujeita ao mar
que é no fim
quem te represa

7 de mar. de 2018

trilha


assim ia
som nas alturas
olhos às vezes fechados
como se escutasse apenas
o próprio coração

queda


deixe que falem
até quedarem-se
todos falidos

imposto


deduzem
sabe-se lá de onde
e fazem com que renda
e a carga só aumenta

mas quem é que paga
pelas inverdades que impõem?

importa


ser importante?
ah, torno a repetir:
isso é relativo

o ar é importante?
ninguém nega

mas quantas vezes tua preferência
é justo por aquilo capaz
de te arrancar
o fôlego?

6 de mar. de 2018

o cheiro da pedra


das pedras que colho ou que me colhem
--sem serem das pedradas que recebo--
a única que tem cheiro
cheira a alma

e cheira por quê?
porque é do tempo forjar sentidos, é isso?
ou é pelo que entra agora em meus ouvidos:
aquelas chansons françaises
trazidas do mesmo além de onde vem a alma?

quando a pedra toca a alma
ela também tem cheiro
--ou é ela que me cheira--
e isso é tudo o que ainda não sei

barato


foi como acordei:
com as gargalhadas
e o olho do circo olhando pra mim lá de cima
bem de onde eu despenquei ao transgredir
por simplesmente tentar alcançar um céu

--será que alcancei?
alguém, se viu, me diga--

sei que torno outra vez a ser palhaço
as alturas trapezistas não mereço
volto a comer de bunda no chão, arrotando tropeços
e sucesso pra mim só quando eu fracasso

assim, desse jeito mesmo
de novo e sempre um ridículo
umas vezes rimando teus panos
noutras a confundir endereços