31 de jul. de 2018

singular nitidez


não cobres de mim
que eu recobre qualquer lucidez.
a luz que apagaste já não se manobra
e não há quem a faça
fazer novamente o que fez.

“apaga-se atrás e já acende-se à fronte”.
e assim, seja através de outra ótica
ou pela luz de novíssima fonte,
enxergo de novo e recrio singular nitidez.

30 de jul. de 2018

ponto cego


no mundo
de tão convictas afirmações,
o gancho da interrogação
é quem me pendura
de ponta-cabeça

até que minha visão
volte a se ajustar
para o ponto
cego.

27 de jul. de 2018

eclipses


no eclipse da lua,
a lua vê um eclipse solar.
no eclipse do sol,
a lua vê a terra a se apagar.

sombra só vê
quem é capaz de calar.
só o sol que não vê um
eclipse acontecer,

porque só verá
quando seu último raio
enfim se dissipar.

selfie


de tão perto ninguém é normal
ainda mais quando o olho
é o da câmera frontal.

26 de jul. de 2018

mercúrio


eu sou de marte.
você, venusiana.

nessa imensa quentura,
nossa sorte é não sermos
de mercúrio.
          ou já teríamos
          estourado tudo.

ocaso


foi o descostume
da madeira em ser gaveta
que emperrou-lhe novas histórias
e tornou-a habituada a prolongar
seu envernizado ponto final.

fim sem fim, os cupins comem tudo,
fazem ponto no ponto destinado
(a contragosto) a ser perpétuo,
a ser de continuação.

e até que a casa acabe,
até que a fundo cave,
o ninho comestível construirá
uma gaveta ainda mais oca.

25 de jul. de 2018

janelas


essas cegueiras minhas
--somente as minhas--
não me impedem de ver bem.
nada pode se comparar, porém,
ao mundo visto por tuas mãos.

sente falta dessas janelas
quem se sente menos posse,
quem se percebe bem mais mundo.

compreende-se descortinado
quem já sentiu-se
chão de tuas mãos
e céu aberto ao parapeito teu.

24 de jul. de 2018

a sede


a sede do vaso que não conhece
o que é saciedade sem antes
ter-se esvaziado pois
--repleto-- está cheio
do que não lhe
pertence
e pleno
do que não
lhe preenche

22 de jul. de 2018

dádivas


a dádiva da semente é a muda.
a da muda, o broto; a do broto, a flor;
a da flor, o cheiro; a do cheiro, o riso.

minha mão nunca soube
ser colhida por tais dádivas.
nunca soube, não se lembra.
tanto faz.

mas a bolsa que carrego
--motivo de escárnios contra mim--
já nasceu-me abarrotada de risos.
cheiro já não tenho, mas tenho
qualquer coisa de semente,
qualquer coisa de flor.

apanho, abro e lanço risos.
tenho pra mim
que a dádiva do riso
me escolheu.

21 de jul. de 2018

pernadas


gastei penas,
desgastei pernas,
distâncias atingiram-me,
vendavais a me tingirem
e eu girando o mesmo centro,
sentado ao mesmo assento.

até que em meu levante
--sem saber-me
desacorrentado ou não--
notei já não levar mais coisa alguma.

daquele ponto para a frente,
dali pra qualquer adiante,
eu que era levado
pela sabedoria das correntes.

19 de jul. de 2018

a cola e o core


nós, bonitinhos como
peças de um quebra-cabeça
colorido e perfeitamente
encaixado? besteira.
vamos fugir dessa ilusão.

depois de tudo
e veja-nos: cacos. juntos, um caos.
mas no final até que ficamos
bonitos assim rejuntados.
vale então deixar a vaidade de caco,
vale ver o desenho formado,
vale até aceitar que entre nós
somente esta cola
faz tudo ficar
muito bem.

18 de jul. de 2018

bendito amor


em mim,
olhos de paixão
não te veem.
veem-me.

quero ver-te
com olhos
que te vejam.

só assim fará sentido
a alegria de gozar
da boa visão
que é
simplesmente
ver que tu existes.

17 de jul. de 2018

verdades que não


expor
minhas verdades
não me agrada

porque não são verdades que conheço
porque não são verdades
porque não

16 de jul. de 2018

o banco de praça de um lugar só


senta-se apenas
a sombra
de uma só pessoa
ou do sol.

o banco
--da praça--
é de um só lugar,
mas muitos lugares
já sentaram-se ali.

topetes e tapetes


tapetes e topetes
servem igualmente
para ornar.

e ornar
também pode servir
para esconder.

não sou careca
--não sei se serei--
mas que seja sempre
ornado de toda nudez
este meu chão
sujo.

14 de jul. de 2018

novidade nenhuma


viver e morrer mais de mil vezes
dentro da mesma e única vida,
um só amor é capaz de fazer.
às vezes amores.
mas sempre
o amor.

não há, nisto,
novidade alguma.
mas para quem acabou
de sair de novo do ovo
--a fim de que não se choque--
vale dizer.

prece aos ventos


não recebi resposta,
mas recebi a mensagem.
daquele nada eu fiz a leitura
e percebi o silêncio de cada coisa.
não é uma bandeira vermelha
fixada no mastro alto
que sinaliza.

os sinais que agora
recebo não são
de bandeira.

são sempre os ventos
--por quem fiz minhas preces--
que dão os sinais.

13 de jul. de 2018

suportes


quando deixarem de existir
os mais diversos tipos de
fronteira divisa barreira
não apenas territoriais
inclusive os pessoais
não por vir-nos paz
mas pelo apinhamento de gente no globo
fazendo do mundo
almofada de alfinetes
aí talvez alguém soerga
um muro só para poder
recostar a coluna em paz

12 de jul. de 2018

grandezas


viajar por horas no espremido
do breu do vácuo sideral entre
os minúsculos e aglomerados
quatrilhões de corpos celestes
com os olhos igualmente
semicerrados.

mas já paraste para passear
com todos os sentidos ligados
pelo meio da luminosa imensidão
dos etéreos espaços onde mora
aquela inteira existência,
naquele microcosmo?
eu já.

saldo


lembro do tempo
que viver era ter medo.
o medo de sofrer
gerava em mim um outro medo
que de tão medo dava medo de viver.

mas medo de sofrer
já é o próprio sofrimento.
e o que é viver?

eu só vim ver
que viver bem não tem segredo
quando entendi que o sofrimento
é o beliscão que a gente dá
na própria pele para ter bem garantida
uma certeza: estamos vivos.
e o resto é vida.

11 de jul. de 2018

peça


aos meus personagens
eu permito o trânsito
em teus palcos

mas os seus segredos
só hei de cochichar
em tuas coxias

anima


o sonho de menina
a sanha de mulher
mas quem a quer?

as paredes erguem-se em seu claustro
e nas paredes de sua pele se alastra
a não aparente chama incendiária
encurralando-a em clausura
precipitando-lhe a loucura.

mas sua cura é relativa
e o único caminho
pra não se entregar
é a entrega.

só que falar disso está fora de moda.
moda é o que está na boca da vila toda:
seu psiquiatra é foda.

10 de jul. de 2018

mar aos ombros


o mar raso rasura as areias,
elas que se encarregam
de descrever os mundos.

apesar disso e ainda que eu não goste
de como suas ondas se quebram
(como também não gosto
de como me quebram as minhas),
minha cumplicidade é com o mar inteiro.

pois nasci pescador afundado,
sempre pescado por coisas da superfície.
não à toa prefiro as funduras:
em seu ventre estou inscrito
e não há nada ali que nos rasure.

9 de jul. de 2018

à mercê


toneladas de nadas
preenchendo vazios
tudo exposto em tom perfeito
tudo pronto, nada feito

nas prateleiras, olhos
nos carrinhos, mãos
cada coisa ao seu lugar
cada coisa em seu lugar
e quem no meio?

quanto custa cada coisa
que comprou vossa mercê?
e quanto vale cada coisa
que comprou você?

signa


escrever é correr riscos
ser mal interpretado
ser bem interpretado
sequer ser interpretado
que só está interpretando
e nem poder interpelar
sobre a culpa atribuída
mas se tenho alguma culpa
boto a culpa em quem quiser
ponho a culpa no papel

8 de jul. de 2018

et sapiens


retornar à barrenta lama,
reemprenhar a caverna escura
e resgatar nossa extraviada
identidade humana

7 de jul. de 2018

ondeado


meu mar surpreendeu-me
ao folhear pra mim
as suas páginas

passou uma
depois outra
depois muitas
no fim, tantas

—todas brancas
todas em branco—
saí do mar
sabendo tudo

meada


não é todo
vai-e-vem que funciona.
o vem não faz sentido quando
o cordão que conduz o vai
se parte.

porque se o fio não parte
a meada nunca se
perde.

6 de jul. de 2018

contradição


atocham-te imóvel
numa pose démodé
impossibilitada
de afrouxar o braço
da tocha de mentira
que tu carregas e
como se não bastasse
ainda te escrevem
"Liberdade".

se isto não é
contradição,
eu que não abro
a boca pra dizer
que é.

haicai xv


gotas de saúde
no abrigo do teu umbigo
são mares no açude

5 de jul. de 2018

almada


não te quero
desalmada
eu te quero
armada

da tua
inteira
alma

livração


da poesia
na linha de produção
composto de versos pré-fabricados
transgênicos e processados
com estética qualquer,
mas sem qualquer
substância poética,
livrai-nos!

4 de jul. de 2018

ecoações


meus cacos de vidro bruto vibram
com palavras que aparentam
ressoar em mim.

mas se vibrassem, eu sangrava.
e este sangue não é dos cacos.
é dos cascos que não tenho
em meus pés coagidos
a pisarem este chão
que a todo instante
reaviva em mim
o mantra cru:

"eu estou num
palácio de cristais.
eu não sou.
só estou num
palácio de cristais."

3 de jul. de 2018

onde dá este mar


um rio invertido
parido da foz
a buscar sua
fonte.

veja, meu bem,
onde deu esta estrada
que veio do mar:

esta estrada,
meu bem,
veio dar
bem em nós.

2 de jul. de 2018

tônicas


foquemos na poética
fiquemos pela utópica
nas proparoxítonas
ou nas tônicas
das últimas
sílabas

micro blues


que viagem curta
conversa surda
que prosa mais torta
lógica morta

se eu não simpatizo
com teu caruru
não quer dizer que odeio
qualquer qualquer quiabo

e se eu não abraço
esse teu deus
não digas que ando
de beijinhos com o diabo