31 de out. de 2018


meus sonhos seguem
em romaria
rumo ao horizonte
do quem-sabe-um-dia

lemniscata


infinito ereto
limitado
no teu corpo em oito
ora me tornando um tolo
ora todo afoito

30 de out. de 2018

sombras difusas


seriam somente vestígios
do que fui,
não fosse o sol
um excelente delator

exatamente o mesmo risco
de se encharcar só com chuvisco
é o de morrer de amores
e ter que seguir vivo

nascente


batiza-se nas próprias lágrimas
e entrega-se à dessalinização,
um jeito de saber-se doce.

se a vida nasce pelo pranto,
é bom talvez morrer de vez
em quando para renascer.

29 de out. de 2018

ia


na monotonia
ia e ia e ia
mas não saía
do lugar

sos


amordaçado,
romantizar é impossível.

mas ainda que sobrasse-me um dos olhos
pra poder piscar-te em morse
o meu grito de socorro,
jamais eu piscaria
tendo-te-me à frente.

tendo-te-me à frente
--tendo a ti somente--
meu pedido,
derradeiro ou de socorro,
seria uma vez mais ver-te.

monstruosamorosidade


minha esperança
ainda é bem menina.
criá-la como a um monstro
e esperar que venha
me salvar de mim.

28 de out. de 2018

(re)existência


não é em mim que eu começamos,
me destinamos ao infinito
e é lá bem longe onde eu daremos.
só é contar-me ao longo do cordão,
sim-a-sim, mão-a-mão.
eu não sou poucos,
sou isso todos.
e só assim
existiremos.

carnaval


em tua carne firme
a minha carne
é fraca

26 de out. de 2018

preterido


tudo em ti é indefinido.
a pessoa, o verbo, o pronome
e até quando há um futuro,
é do pretérito.

descidas


nasce o rio
quando a nascente desiste
de si.

e só se põe a correr
quando entende
que todo santo ajuda.

mas amor só vai brotar
quando o mar abandonar
sua fuga.

25 de out. de 2018

repatriados


os temerosos olhares de todos
submetidos ao sicário mastro
—não era à bandeira ao alto—

e, sem que ninguém visse,
nossas patriotíssimas mãos
criando ali um novo país.

sentir aromas de outro tempo
enquanto o mundo fede.
desalienar-nos por completo
quando tudo é deserto.

aos meus cuidados


para que tua própria estupidez
não te machuque
eu cuido
de impedir a dor
     —que tu me deste—
de te rever.

24 de out. de 2018

contrainvestida


parecia bater em minhas costas
como se fosse porta fechada
que eu tivesse que abrir
pra deixar livre passagem.

parecia que era o tempo,
mas o tempo
—peito aberto ou não—
só entra pela frente.
e sem bater.

as batidas cessaram
e eu sinto o vento na cara.
talvez nem seja o tempo
que chegue pela frente.
sou eu que vou.

reminiscência


é a parte mais involuntária de ti
—a que não consegue se por nem se opor
a sair de minha cabeça—
a comandar tantas vontades em mim.

22 de out. de 2018

canto da terra


se tudo ficar mais grave,
se a gravidade aumentar
até soterrar e matar nossa voz,
que ela então morra semente
pra renascer do solo canção
e ser ouvida em bom som
em qualquer canto da terra.

19 de out. de 2018

meia-volta


prender o dedo
na porta que se fecha
não dói nada

perto da dor de ver
que a porta se fecha.

o que importa
é que com o que lhe sobra
de dedo, você se toca
e nunca mais toca,
só dá meia-volta.

18 de out. de 2018

teu estame, tua estâmina


pra quem não sabe nadar-te
suas braçadas são tapas
e devem muito doer-te.

eu? não reluto. afundo.
bom que não crio-te estrias
na já senoidal superfície.

aprecio o profundo
o breu do teu íntimo
o fundo obscuro de ti.
onde é dado o sentido da voz
onde o que te revela é a luz
que --calada-- ali é criada.

17 de out. de 2018

periférico


eu só queria
ser do interior
e ser do centro
de mim.

mas essa periferia
que é o coração do outro
me chama a ser mundo
onde o mundo não se resuma
a mim.

16 de out. de 2018

a chegada


o rádio de pilha chiando a madrugada
um quase pedido de silêncio ao silêncio
um jeito quase estranho
     — mas hoje nada mais é estranho —
de esperar pelo anúncio

do teu nome a chegar.
pelo menos do teu nome
a chegada.

por voz que não seja um delírio.
ainda que seja tua.
a chegada.

15 de out. de 2018

a um sol nascente


não quero acreditar
que até mesmo a esperança
tem vivido cabisbaixa.
prefiro supor que foi a luz
—a do fim do túnel—
que se afundou sob este chão
pra aprender lá no Japão
como faz pra se reerguer.

palavra de peixe


duas cidades dentro de minha cidade,
cada uma guardando seus seres peculiares:
os fantásticos, que vivem da areia da praia pra lá;
e nós, mergulhados em nosso mar de normalidade,
vivendo submersos, da areia da praia pra cá.

haicai xxii


vida capoeira,
ponteiro do tempo arteiro
sempre a dar rasteira

13 de out. de 2018


toda esta embriaguez é necessária
ou seria insuportável esperar superar-se
este mundo tonto

opção facial


quanto ao que teu rosto expressa
— teu rosto, que mudou de língua —
o teu rosto não me diz mais nada

12 de out. de 2018

amor a longo alcance


sonâmbulo,
o amor atravessou a cidade
trajando pijama
à procura de uma cama.

o amor não é
de dormir.
apesar do sono,
só é de vagar.

11 de out. de 2018

inflamado


cabeça quente
desajuizada
implorando refresco
ou um pouco de colo
e o que lhe dão
é a boca molhada
afogada no fogo

um passe para o abismo


com minha régua meço o mundo
ora palmatória, ora navalha
em cujo fio
me fio e fundo

ninguém eu vejo
quando olho pra direita

à minha esquerda
é onde estão

e até quando tremo
ao fio ferido, sigo convicto
de estar extremamente certo
enfiado aqui no meu extremo

9 de out. de 2018

tutela


a ti e a mim, meu bem,
bem sei que tudo isso cansa.
mas veja o que de livres
nós dois ainda temos:

as mãos e os corações.
e, repousando sobre eles,
um sonho meu e seu
que ninguém mais alcança.

6 de out. de 2018

5 de out. de 2018

talvez mais que sete


não sei traduzir, talvez transcrever.
mas sou pobre de palavras
e a transcrição é rala.
sempre tem quem
entenda tudo
errado,
muito errado, errado demais.

ontem transcrevi o universo
—é fácil transcrever—
com os sete vocábulos que lhe bastam
e ela me disse: "você me traduziu".
li e reli. no fim,
fiquei sem saber dizer.

4 de out. de 2018

quo vadis?


diante da barbárie,
o silêncio consciente
que não apenas consente,
mas vai um pouco além:

amplifica o som
dos gritos de dor
e também a própria dor
em quem ainda sente.