31 de dez. de 2019

far all


o que eu já não sei esquecer
prefiro deixar reluzir.
quem sabe assim
consigo ainda evitar.

lugar de encontro:
dois olhares,
um mesmo horizonte.

meu nariz


a criança sumiu.
sumiu a minha criança.

desde quando, eu não sei.
mas depois que me dei conta
deste fato, sinto falta
todo dia da criança.

de repente está brincando...
vai ver que se escondeu
bem debaixo
deste empinado
nariz meu.

27 de dez. de 2019

25 de dez. de 2019


roda o gigante
moinho no mar.
quem pedala nem sente,
mas nada sai do lugar.

19 de dez. de 2019

12 de dez. de 2019


buscar o amor
como quem se orienta na geografia
pelos ponteiros de um relógio.

uma questão de tempo
localizar o erro.

10 de dez. de 2019

teu nome


lembro sempre que mar é o teu nome.
    uma pirraça do mar (ou tua)
        aliar-se à vista da minha janela nua.

6 de dez. de 2019

impedâncias


raio reincidente
se vale, vale somente
pelos novos acertos que faz.

reincidente amor,
erre, mas faça o favor:
sejam novos os erros que traz.

5 de dez. de 2019

rua


da canoa,
desinventei o que era rua
pra chão nunca mais eu pisar.

agora só encontro recosto
na beira terceira do leito,
de onde te chamo a voar
um voo sem voo,

na dança das cheias
e veias vazantes,
um teu jeito de estar-me a tocar.

um qualquer


em meio a tudo,
um qualquer lugar de paz
talvez ainda exista em mim,
pelo que em meus braços
teu sono me diz.

3 de dez. de 2019

memórias


pode ser que não tenha sido
e nem deva entrar no testamento.
podem ter sido apenas versos inventados
deste livro de esquecimentos.

2 de dez. de 2019

em si


mais uma garrafa aberta
  e a mensagem que busca
em si é que está naufragada

o despropósito do leito vazio


se você profanar seu próprio silêncio,
se deixar correr até mim como rio
em palavras e afogamentos
a blasfêmia de seu amor,
garantida estará a salvação
ao menos do lugar
e do curso das águas.

30 de nov. de 2019

a posse


possuir apenas o querer
sem a coisa querida
sequer o saber
ou aceder

sinaliza uma sina:
uma posse invertida:
a coisa em si não é sua;
o provável é que ela o possua.

palavral


do frêmito das folhas,
o frêmito dos lábios.
e um sussurro se propaga
quase incônscio, quase sábio
do fundo da garganta
ao fundo do fundo
da alma.

28 de nov. de 2019

céu fecundo


quis um céu
em pleno cio
voar dentro dos olhos
de um desalado
que nem eu.

e não sei se era noite,
não sei se era nuvem.
céu fecundo, eu só sei,
pelo outro céu que me nasceu.

27 de nov. de 2019


parti por um rio
que já estava de partida.
só rios que não partem
—todos sabem—
é que chegam.
e por termos decidido não ficar,
ficamos:
eu aqui sem lar e o rio
um pouco ainda mais distante
do seu mar.

25 de nov. de 2019

recurso


com as vozes do passado
não quero um diálogo.
viagem do tempo só existe pra luz.

o que às vezes ocorre
é coisa diversa:
uns braços de rio
a darem-se as mãos.

o tempo é duro:
passado reembalado,
presente sem-futuro.

24 de nov. de 2019

muito


não te quero amar tudo.
nunca te quis amar tudo.
porque pode-me ser pouco.

o mapa que carrego
não traça seus limites
e nada sabe sobre tudo.

navegar até seu fim não quero,
quero navegar até o fim de mim.

23 de nov. de 2019

andarilha


com os pés refaz as pontes
e reconstela as minhas ilhas

brisa andarilha
vento peregrino

você que me lê com total precisão
preciso que me leia bom destino
com a palma calma de sua mão

19 de nov. de 2019

epílogo


nem que seja
um último ato,
buscar o buraco
onde as esperanças morrem
pra finalmente enterrar
o buraco.

12 de nov. de 2019

graça do vento


tão demorada a queda
que o abismo se fez morada
e aquele que cai
já nem lembra que cai.

vai leve levando seus dias
como se de vento fosse a estrada
como se de dança fosse o vento
como se de canção o silêncio.

e assim vai tão leve
que o que nos parece breve
pela graça do vento
vai se tornando em doce e lento.

8 de nov. de 2019

prelúdio


desde a eclosão
até o último pouso
um allegro

ora cedendo
a tensões diminutas
ora crescendo.

breve

porém belo
como o prelúdio de bach
da suíte pra cello.

é o tempo é o tempo
a quem é de voar.

6 de set. de 2019

mesma sorte


um realejo a tocar
sempre a mesma sorte
à mão que gira a manivela.
de quem é o azar,
dele ou dela?

lucis


lá fora tudo é muito escuro.
aqui as luzes nos caem do céu,
creem alcançar seu futuro:
um projeto prematuro
que não sai nunca do papel.

3 de set. de 2019

disorder


não crie caso,
tudo é acaso.
aceite o caos,
surfe no caos

e, ademais,
entenda o caos
como seu cais.
this is the order.

31 de ago. de 2019

30 de ago. de 2019

red notes


verter a noite numa taça
e sorvê-la.
se houver outra taça,
dividir a noite
e deixar-se sorver.

29 de ago. de 2019

ilha de maré


ainda ouvi do meu peito
um desaguar,
um murmúrio de leito
que corria sem nunca passar.

ouvi os atritos das nuvens
no queixo do ar,
roçando branduras
e desconjuntando do amor
suas armaduras mais nulas.

mas e meu amor,
que tanto ouviu
a voz desse rio,
onde se foi derramar?

aqui o mar soa rouco.
 mas noutra estação,
canta outra canção.

25 de ago. de 2019

o perguntador mudo


perguntam-me
que coisas deixarei quando
eu partir deste mundo.

mas o que
poderei levar?
nada? pergunto.

então digo
deixarei tudo.

22 de ago. de 2019

luz e pedras


tempos de escurecimentos...
e a mineração que pratico
ainda é o que salva.

alguma pouca poesia barrenta
na jazida dos seus olhos
e à claridade
eles me extraem.

saio rico,
sem ter nada.

apocalapso


feras berram em lamentos
o tormento desse inferno é o que lhes resta
um messias, a própria besta

20 de ago. de 2019

19 de ago. de 2019

na banca de tiro ao alvo


matarei-me neste plano
pra nascer melhor no outro
(ou nos outros).

pretendo pegar uma telona
ainda hoje. juntar minhas balas
(essas mesmas de borracha)
e da esteira da manada
desgarrar-me.

não tô afim de pipoco.
vou ver o tarantino mais novo
—dizem que é menos revolver
(mas não menos fogo).

e você,
pequeno pato,
qual seu plano
pra hoje?

17 de ago. de 2019


um girassol
na noite tinta
fica tonto

o ser


a chuva dedilha antigas cantigas
em novas poças d'água.
e em meus braços
na novidade das palavras mal formadas
a poesia

que,
sem carecer de nada,
é.

12 de ago. de 2019

canção de inverno


andorinha, não me venhas
perto assim do meu relógio
pra falar de amor eterno

nada dura, sabes não?
primavera, outono, inverno...
só conheces o verão

8 de ago. de 2019

espelho, espelho seu


eu não sei amar
eu não tenho um sonho
nunca me proponho
ir pro seu lugar

eu não faço sexo
eu não tenho fomes
entre os nossos nomes
nunca houve nexo

não ache isso complexo
desmanche nosso amor
e —faça-me o favor!—
meu nome é só reflexo

e só
mesmo
um demorado abraço
para tirar o atraso
de ter estado a esmo
e só

6 de ago. de 2019

trajeto


prefiro o trajeto discreto,
quase poético
nos tantos rodeios.

já não sou de ir tão reto,
como a tua imagem
nas vezes que me veio.

quero chamar-te minha flor?
até te chamo,
mas eu floreio.

31 de jul. de 2019

apreensões


pela pedagogia de tua ternura
minhas vistas chegaram
à cor que precede o verde-novo
e ao lugar onde a fruta se oculta
antes de brotar.

fui apreendido por tudo.
nem tudo deu pra aprender
daquilo que ainda se vai revelar.

29 de jul. de 2019

até hoje


descobrir esta terra
e, até hoje, subjugá-la
e em tudo sugá-la.

massacrar o seu povo
e, até hoje, deixá-lo
de suas garantias
descoberto.

ninho inusitado
tramado num peito em palha
sortudo espantalho

28 de jul. de 2019

26 de jul. de 2019

o nome do abraço


o abraço só nasceu depois do gesto.
o gesto sozinho
era apenas gestação.

teve que vingar
para nascer
antes que o tempo lhe perdesse.

nascido, ganhou nome
que palavras desconhece,
grafado com cheiros,
suspiros, afagos.

existe o abraço,
e existe somente o gesto.

mas existe também aquele
a quem restou guardar a memória do nome
de um jeito que a cabeça não se perdesse.

25 de jul. de 2019

24 de jul. de 2019

gole de luz


a paciência da noite,
que deixa tudo escapar,
sabe deixar que cada coisa
volte segundo seu norte
ao seu devido lugar.

22 de jul. de 2019

herança do tempo


a distância que tomei,
tomei-a para mim,
como bem que se leva consigo,
minha devida herança do tempo.

nela vive a minha vã soberania,
feito o navegante sem-pátria
que encontra chão
mais firme e mais seu
no convés da própria balsa.

vivo na distância que me cerca,
que faz de cada um pequena ilha
e entendo que o mar que me isola
é igualmente o mesmo
que me integra.

19 de jul. de 2019

museu


não tem o teu cheiro,
não tem teu calor,
sequer tua alma ele tem,
como tive, um dia, eu.

e aquilo que ele tem
de ti, musa,
nem é mais teu.

16 de jul. de 2019

lugar


não é tanto pela potência das fontes.
é mais por um direito irrefutável das cores
que tanta luz te chega tanto.

tanto é que nunca é noite
na tenda de tuas pálpebras
e qualquer escuridão
em um piscar de olhos
se apaga.

15 de jul. de 2019

11 de jul. de 2019

moldura


na janela morta onde habitei
a solidão me emoldurava
eu sem saber de nada.

nada se passava, nada eu via
mas o amor mora no tempo
e o tempo por aqui passou.

e foi de encher os olhos
pois foi de encher a alma.
a luz de outra janela —viva!—
dando sopro e vida aos dias.

daquele tempo só restou a casa
onde eu digo que vivi
fotografia.

10 de jul. de 2019

canção pra boi dormir


eles cantam saudades
    elas cantam o amor
e o que canta em mim

no ruminar do ruminar
  da estranha palha seca
 que não quis deixar-se grão
    que fogo algum incinerou
        e que pelejo pra engolir

não é sequer canção:
são arremedos
  reverberados
da solidão.

4 de jul. de 2019


se iludir
é transformar-se noutro alguém,
então desiludir-se também.

extração ilegal


o que justificou a invasão
a separação
o rapto a extração
das meninas sabinas?

foi a sabinada provocada por roma
para esculpir sua população?
não. nada pôde justificar.

nada senão
a mão esculpida
fincada no mármore
da carne dura
quase liberta da pedra

e também a própria carne
da vivíssima nádega
sabina esculpida
pela mão bolonhesa
de um bendito joão.

marreco empolado
bola (vazando) da vez
do pito do pato

2 de jul. de 2019

time-lapse


a flor não tem pressa,
mas também não perde a hora.

por isso que ganhou um outro sentido
e valeu tanto para mim
ter sido só orvalho,
durante o sono das espécies.

1 de jul. de 2019

na geladeira


saber deixar
sonhos
na geladeira

e, quando for hora
de friezas do tempo,
não esquecer:

talvez não haja mesmo
lugar melhor
pra se aquecer.

19 de jun. de 2019


cobre-me a manta noturna.
não é muro
o escuro diante de mim.
é estrada entreaberta,

corda em que bambo dispus
a contragolpe meu abismo e meu céu.
a borda do breu
também é borda da luz.

18 de jun. de 2019

antiglaciais


hábeis operários
de fábricas de fogo,

que a mínima fagulha conseguem
gerar roçando o pelo

mesmo das pedras
de gelo.

13 de jun. de 2019

a.tu.a.ção


resultantes de tantos vetores...
mas quem somos nós neste agora?
neste tempo atuante que mal nos ancora,
somos protagonistas ou meros atores?

6 de jun. de 2019

escala beaufort, grau 6


passantes marchando a menos
de 40 quilômetros por hora

avenida paralela
trânsito emaranhado

caído empapado capa com avarias
protegi eu mesmo meu exemplar
do pesado demais para a ventania

outros danos são noticiados
e oyá já não tolera esta cidade
fraca demais pra ventos frescos

5 de jun. de 2019

através


tive que passar
por pessoas
e não passei bem.

melhor dizendo,
tão bem
eu passei,

que acabou

que em algumas

fiquei.

2 de jun. de 2019

1 de jun. de 2019

tocata e fuga


que mal-faz ser amante só do vento
e se entregar enxuta, bruta, dura
ao escultor repleto de ternura
ávido por me pôr em movimento?

que mal-faz persistir no encantamento
daquilo que me toca com usura
e desistir de quem, lá na lonjura
diz tocar, mas só toca o pensamento?

palavras, astros, nuvens... tão remotos!
vendavais, raios, chuvas valem mais.
o amor que me faz bela de verdade

precisa mais de gestos que de votos.
eu dedilhar em mim felicidade,
tocar-me o amor próprio, que mal-faz?

29 de mai. de 2019

cidadão


à entrada oeste da cidade
em bairro chamado portão
vivo só minha fronte acesa.

a noite é a minha cidade
a minha cidade é fantasma
cada hora um novo lugar

e é preciso dormir
nunca
pra ser cidadão.

7 de mai. de 2019

visto


de perto não vejo tudo,
de longe enxergo aquém.
por onde me movo me vejo;
quando não, sou ninguém.

argumentação


os grãos da palavra,
como em uma moenda,
à exaustão do pó.

com todo o pouco que soube
lógica ética ótica poética
argumentei.

sobrou-me
(e tive que guardar comigo)
o argumento mais letal
(letal para a questão,
mais letal para mim):
sobrou-me a dor.

e eu não pude expressá-la.
expressá-la em palavras não pude.
como de mim arrancá-la em palavras
sem que a dor desta dor
arrancasse minh'alma de mim?

6 de mai. de 2019

pra nada


para ornar as bordas
das fendas do corpo
que expõem-me a alma.
e em nada ocultá-la.

pra isso
e pra nada
que às linhas
redijo.

batalha feita apenas
de pretensos derrotados
não é guerra.
     não
     é guerra.

4 de mai. de 2019

o tesouro da espécie


nunca é nobre
uma rua chamada
coração.

não pode ser nobre.

mesmo em bairro
chamado de centro
ou tido por nobre,
há de sempre ser pobre

dado que sempre vai dar
em periferia, posto
que sempre dará num posto distante
onde eu nunca me sobre.

3 de mai. de 2019

dessubstantivado


tanto habituei-me
ao teu silenciar

que ao decretares formalmente
o teu calar definitivo

o meu ouvir já desnutrido
não te sabia assimilar.

2 de mai. de 2019

estocada de uma guerra vencida


brandia-me um florete
era contra mim que o brandia
dentro em mim mirava plantá-lo
por ser somente ao fundo
ao fundo do mais fundo
que aflora a brandura

jaculatória


pra cima se move
          atrás da água o tronco, mas
é ele quem chove

30 de abr. de 2019


heráclito já havia dito:
ninguém repete banho em mesmo rio.
e eu o repito.

clímax


ruboriza a folha
    descobre o regaço nobre
        de nuvem se molha

a derme ígnea


também o fogo primitivo
sujeitou-se à evolução
na mesma contracorrente
da pele evoluída à flama
que ao ser tocada debela
suas paixões aparentes.
          este fogo,
          só com fogo
     se apaga.

29 de abr. de 2019

pra não ser cínico


meu coração, o meu domínio?
teu nome constando em minhas atas,
coisa sensata é se eu constato
meu coração, um condomínio.

a dobra


meus cadarços
amarrar bem amarrados
a um futuro,
destino comunitário
para quem está de pé.

ainda antes da baldeação,
dobrar bem dobrada
a primeira esquina que me aparecer,
pra facilitar na hora de guardá-la em bolsos
pra facilitar na hora de encontrá-la
pra quando você ordenar
que eu veja se o acaso quis
que você estivesse lá.

de toda sorte,
todas as ruas se cruzam
na mesma e única
esquina,
num qualquer futuro
amarrado.

28 de abr. de 2019

a última expansão


os limites das bordas,
a condução das cordas,
a trama dos conformados,
tudo se confirmando
de seu qualquer pouco espaço.

o overflow dos contadores,
com tantos passos
tão predestinados,
reescreve o previsível fado
como fábula mil vezes recontada.

implodir
é meu melhor movimento
se quero alcançar uma última expansão:
a que acontece pra dentro.

26 de abr. de 2019

laudo icário


a certa altura só o frio aumenta.
o ar é raro
e rarefeito o pensamento,
se opta-se acreditar estar
em lugar bem mais solar do que terreno
—um exagero!

o degelo das asas,
o derretimento do voo,
quem causou
—e até Ícaro admite—
foi a febre do momento.

25 de abr. de 2019


bendita
a palavra
é beijo
de língua

ciganagem


quem disse que cigana não se engana?
prevê futuros, vê o presente,
mas mesmo ela se surpreende
ao ler-me escrito em tua mão.
e se onde estou não prendo tua atenção,
por que tua mão 'inda me prende?

o zyg


em tempos líquidos,
que tragédia ter amado você
desmanchava-se o coração de pedra.

24 de abr. de 2019

deviant


percebes como o amor
deforma até palavras mudas?
mesmo tua alcunha (que já não sei pronunciar
sem ciciar) restou transfigurada, como a vereda
que alterou de modo irrevogável
todos os meus passos.

acometido


disse um dicionário:
  verbo transitivo
     1. ter amor a.
o sentido de amar,
pelo contrário e
  antes de tudo,
     é nada ter
e pelo amor
    ser tido.

reincidentes


tão resoluta em sua obscuridade,
nisto veio dar a noite:
claridade entre dentes.

20 de abr. de 2019

pontos escusos da notação viária


não existe rua sem saída.
se há uma entrada,
ainda que seja na própria entrada,
há uma saída.

seria o mesmo que dizer
rua sem entrada!
qual o sentido lógico
—quero entender!—
de haver coisa como esta?

uma vez eu saí de uma rua
que até hoje procuro {
mais do que propriamente achar o local
irreal que se abriu em caminho pra mim
} entender a lógica de ter
feito sentido em minha estrada.

18 de abr. de 2019

roseiral das curas


de quando os meus receios dissolviam-se
como os espinhos daquelas rosas
que nasceram da minha mão esquerda
sem me ferir a palma
nem sequer dilacerar-me a alma

esquece o coração


pra que minhas criações incoerentes
possam parecer mais intelectuais,
que manufatura há de ser capaz
de produzir-me uns argumentos convincentes?

é de dar dó e eu só lamento
quando a nossa poesia bota
uma razão fria pra ganhar mais nota
que todo nosso vagabundo sentimento...

17 de abr. de 2019

aceitos


e depois de tudo,
ainda sigo enquadrando às obsoletas dimensões
os meus versos.
e talvez dos meus erros este seja o maior:
ainda seguir.
mas ainda sigo aceitando-os.

ainda


alguém que carrega por mim
não poucas vezes
toda a esperança que suporto manter,

alguém como esta palavra
ainda
não me apareceu.

inolvidáveis


uma flor ornando a tua orelha...
tua orelha ornando a flor...
e a natureza criando silêncios
que não se calam
em quem tem olhos para ver.

16 de abr. de 2019

fireberg


este meu querer é apenas a pequena parte
—talvez a parte mais detectável—
daquilo que nem eu sei dizer o que é.

e por propriamente não sabê-lo,
torna-se-me demasiado detestável
quando escala-me e me inflama
a febre irrefreável

de nunca mais
querer
querer-te.

reticentismo


chove tanto agora
que até o silêncio desperta
pra desmanchar-se na mesma hora.
e é tanto silêncio,
tanto silêncio,
que parece dilúvio.

15 de abr. de 2019

o motívago


o que motivou o último voo
da ave que sabe que viu
por onde chegar ao lindo horizonte
foi poder enfim pousar em seu definitivo fio.

13 de abr. de 2019

a fundo


aplicativos para delivery
          [de comidas a romances],
mas a fome a pedir
          [menos a vitrine e]
mais a entrega.

11 de abr. de 2019

a chave do entamáfobo


já não discuto com portões.
e mal sei a explicação para adentrar.
quando eu adentro,
é sempre nas clausuras
desemparedadas e sem teto.
e assim está lacrado o meu destino:
o meu destino é estar lacrado
a céu aberto.

infâmias da fome


se o instinto insiste,
a sina ensina:
a fome força a pescaria.

para um peixe miúdo,
como concorrer, contudo,
com aquele graúdo que zomba

por dominar o lago
por fazer tanto estrago
por só pescar com bomba?

10 de abr. de 2019

auroras


vasculhar as próprias sombras
com o máximo de luz que puder portar.

sombras nunca serão encontradas...

manter o foco no acender de auroras.

9 de abr. de 2019

alquimérico


o poeta, sem saber
lidar com a perecível
condição do amor
que amou e sofreu,

sonhou e penou,
pela pena desvendou
a sorte de imortalizá-lo.

eis então que o amor fenece,
mas do amor impresso em versos
nunca ninguém viu a morte.

8 de abr. de 2019

disparate


pra um poder que tanto violenta,
oito disparos já seriam exagero.
o que dizer então de mais de oitenta?
até a esperança tomba em desespero.

7 de abr. de 2019

entre nuvens e homens


armadura feita de vapor e pouca luz,
atravessá-la é turbulência.
se é ela em precipitação quem atravessa,
o iminente risco é de devassa.

então, pra que isso tudo,
essa armadura dura
que facilmente denuncia frágil
a quem tanto quer blindar?

não é sequer preciso atravessá-la,
ninguém nem perde tempo se molhando nela
pra constatar tudo o que o medo exala.

quisesse ser intransponível,
optaria por ter por única armadura
a sólida coragem de chover.

5 de abr. de 2019

sobre o silêncio lavrado


de ser concebida sem pecado,
nem mesmo à palavra aconteceu.
consentidamente desvirginada
pelo fórceps da liberdade,
a primeira boca então,
de um modo nunca antes
tão inteligível,
urrou.

também estreou novos caminhares
nos mesmíssimos labirintos.

e a estética do silêncio,
ainda que jamais violada,
nunca mais pôde ser ignorada.
hoje é apreciada nos campos
de paz ou de luto.

mais nada


então eu corri, corri, corri...
o rumo pouco importava.
importava, sim, era correr.
olhei pra trás e pros lados
e o mundo inteiro a correr.
mas por que tanto correr?
a razão pouco importava.
importava, sim, era correr.
e mais nada, mais nada.
então eu corri, corri, corri...

4 de abr. de 2019

a lágrima e o tempo


dois vernizes:
um, a realçar as cores antes
         do linear e veloz decaimento;
o outro, talvez somente um quase alento.

2 de abr. de 2019

conto infante demais pra ser irreal


a felicidade,
quando da tristeza estava por um triz,
veio oferecer-me ouro
em troca do meu pequeno tesouro.

eu não quis,
mas ofereci morada
e a felicidade, então bem amparada,
finalmente foi feliz.

29 de mar. de 2019

quebranto


eu queria quebrar o silêncio.
não o de agora —irremediável—,
não com palavreados —ineficazes—,

mas o silêncio arquitetado,
que produziríamos
para nós mesmos quebrarmos

pelo sibilar de nossas pálpebras,
pelo tumulto da pele,
pelo desespero gritado dos pelos.

o silêncio de agora,
este sim,
é que nos quebra.

nu com a mão no bolso


sem saber
onde pisa

o homem
à frente

segue apenas com suas meias

verdades.

28 de mar. de 2019

pelo ar, pelo pelo


cante o amor,
mesmo sem saber cantar.
evite cantá-lo,
se acaso não quiser revê-lo.

fibrina


quando faziam hora
nos cascões das pequenas feridas,
nem sabiam exatamente o que faziam
as unhas de minha criança.

agora que sou feito de garras,
é incapaz de coagular-se
o fluxo de meus pensamentos,
expondo-me para visita às ardências
das minhas todas lembranças.

26 de mar. de 2019

encarnação da pedra


o que a faz sedimentar-se
faz, do mesmo modo, ela sangrar.
a mão que ao peito pousa e acalma e afaga
é a mão que desperta todo o magma.

25 de mar. de 2019

um lugar com seu nome


sem ter logrado qualquer êxito
é possível que tenha inventado
um não endereçável tipo novo
de logradouro

22 de mar. de 2019

o sorriso de einstein


aceitar e embarcar sorrindo
numa carona sem destino
de um grânulo de luz

e ver
de verdade
o tempo não passar.

21 de mar. de 2019

          folhas levadas pra casa
     tempos de chuva
formiga faz asa

ave noturna


vem e apanha os meus olhos,
agora que as noites serão mais longas.

porque a poesia é filha da não-palavra
e o adejo que eu desejo
em meu sentimento já está subscrito.

20 de mar. de 2019

a pluma e o aço


se tu não encontraste
entre a pluma e o aço
algo mais que um contraste,
ao teu olho-matéria
falta ver pelo espaço
a mesma aura etérea
que faz tecer abraços.

19 de mar. de 2019

ofertório


e tinha outro jeito mais ternurento
        de apagar as tuas pegadas
do que te ofertando asas?

18 de mar. de 2019

de cabeça


        recapitular
                 de cabeça
todos os passos a evitar
e todos os cuidados a tomar
para não cair uma segunda vez
naquele mesmo vão
de onde os pés podem provar
da perigosa textura das estrelas.

mas se atravessar esta vida
calculando passos e tomando cuidados
significa viver em vão,
então o melhor mesmo é cair.

     e que a queda seja
     inconsequentemente
     de cabeça.

17 de mar. de 2019

sou a chuva que, só
pra fazer graça em seu corpo
cinicamente desprevenido,
     antecipa o último dia
de verão.

ineditismo


à esperança
ninguém ponha
nome de gente
circunstância
             lugar

pra que ela venha
a se manifestar
 enfrente a chuva
a seca a flor a pedra

e na hora que ela escolher
 no local que ela estabelecer
ela lhe pronunciará seu nome
como se não fosse
a primeira vez

14 de mar. de 2019

não projetado


direcionada para mim,
a palavra apontada
como uma arma

dispara o silêncio
e nunca é o meu corpo
que abala.

13 de mar. de 2019

impacto


e você,
que não passa
de uma pequena existência passageira,
a depender de como passa,
                              não passa.

12 de mar. de 2019

de onde nasce a luz


nebulosa,
     nebulosa vida...

que o que ainda nos atrai
dissipe a turbidez de nossa vista
ao fazer em nós, um dia, ser parida

—nem que seja
pela única estrela
conseguida—

a suficiente
luz.

cinismo


nas igrejas,
os pássaros fogem
quando os sinos berram.

ultimamente,

deus tá
que com tudo
se apavora.

8 de mar. de 2019

2 disposições, 2 infinitos


manter-me aliado à sua luta,
   mesmo ainda tendo
   batalhas em mim pra vencer.

aprender a lutar como você,
   ainda que seja preciso
   de novo e de novo e de novo
   nascer.

6 de mar. de 2019

um lado


há um lago.
entre o teu
e o meu lado,

águas.
águas muitas,
comedidas

pela nossa
muito pouca
multidão.

abandono o lado
e dou vazão ao desapego.
abandono-me ao lago
e converto em farol a fogueira da aversão.

sob as lentes de camões


que é como também fico quando,
sonhando um dia capturar o umbigo
luminoso da via láctea,
me contento com as migalhas
do cruzeiro do sul
que minha cidade poluída em luzes
não sabe abafar de minha lente
pobre. eu me contento de contente
porque vejo cores e coisas
       que nu
o olho não vê,
mas sente arder.

4 de mar. de 2019

3 de mar. de 2019

outrossim


estar à altura de tua voz
mas antes ter, outrossim, o mínimo
da inexata ciência de tecer
dos versos a seda.
não para que te vistas,
não para que tu declames,
para que consintas.

2 de mar. de 2019


é insuficiente apenas evitar
o embaraço da lucidez.

necessário de fato é destemer
  a sedução do arrepio de estar
à encruzilhada das lembranças.

do pó ao pó


eu, que pra você não valho nada,
fui coroado rei de paus no carnaval.
e era tanta gente afim de mim
que no fim da festa
em meio a tantas cinzas
eu já estava entregue a seus cupins.

1 de mar. de 2019


             certo ele não acha
sem ter beijo e já ser príncipe
                      quando ‘inda coaxa

28 de fev. de 2019

3 perguntas subentendidas


quando você fala
de mergulho profundo,
você está falando das grandes distâncias percorridas
na vertical, para baixo, em quilômetros,
numa densa solução líquida
qualquer?

ou se trata das trajetórias
descritas sem qualquer inércia
por cada um dos muitos
vazios
presentes em tudo,
inclusive no mais ínfimo
de nós?

27 de fev. de 2019


um sapo na poça
pra sonsa fome da onça
é sopa insossa

a manutenção do tempo


o deserto alimenta a floresta,
como a lembrança alimenta e mantém o tempo.
mas eterno nada é,
nem a lembrança nem o deserto nem o alimento.
eternizar-se é ser esquecido.

24 de fev. de 2019

problema físico


queria eu ter rompido com você

muitas barreiras
até sermos como a luz:

superar não sei quantas vezes
a barreira do som
sem sequer chegar
a zunir.

depois,
dar um passo à frente
               da própria luz
pra desmentir o tempo.

zero


que confuso ter topado
esperar pelos seus passos.

de um jazz improvisado
sempre tem o inesperado.

drum fuzzy cool jazz
é cada música
nessa física quânti-
ca da música.

e eu sou um zé
tomando nota
tocando a nota
tomando a nota
que me faz caber.

21 de fev. de 2019

voo absoluto

tem olhar
que espanta
o voo

e tem olhar
que espanta
o medo.

o medo se admirou
por conhecer de seu menino
todo o poder de voo

depois de servir
de pista de decolagem
para dois olhos.

20 de fev. de 2019

reflexos em frações

aquele espelho
que me pegou pra eterno
desfez-se em muitos cacos.

          caco de espelho
é diferente de caco
           de vidro.

se você se corta no caco
que levou
de meu espelho,
quem sangra sou eu.

se você procura ver
               algo de mim
       no caco que possui
                de meu espelho,
se espantará com um olhar
que já foi meu.

18 de fev. de 2019

o ermitão


sair fortalecido da ventania
por saber que a mãe do vento
é tua voz.

quantas vezes fossem necessárias
eu trocaria de casa
para manter-me no mesmo lar
onde se fabrica a voz do mar.

16 de fev. de 2019

melhor mesmo se eu fosse um

dos muitos tipos de arquiteto
que a natureza comporta:
quase não se importar com a porta;
viver sob o mesmo céu como teto.

e eu seria um,
eu seria mundo.

15 de fev. de 2019

vida parada,
estatura estagnada.
quando nada,
está
à vista de todos
       tua
estátua.

14 de fev. de 2019

placa indicativa

se alguém chegar até
                                      você
e disser que finalmente encontrou
o que tanto tanto procurava

e se você sentir o mesmo
mesmo sem saber
que estava
e o que estava
procurando a esmo,

foi isso o que lhe veio a acontecer:
a pessoa achou a si
e você achou
você.

não perca isso
por nada nesta vida,

mesmo que venha a perder
quem pode ter sido sua
imprecisamente bela
placa indicativa

indicando
tão precisamente
          você.

13 de fev. de 2019

atirado


de ser culpado
eu não me furto
mas do pé proibido
mordida a carne
o suco chupado
depois cuspido
também fui
o fruto

8 de fev. de 2019

mundo caos


até parece que somos
ora os cachorros
ora os rabos

ora corremos atrás
ora descaso

e só vez em quando
uns abanos

fenomenologia dos teus olhos


mesmo se acontecer
  de o olho se pôr,
a luz do olhar
persistirá.

          o que fica
          é um contínuo bater de asas
          perpetuando a primavera


aquilo que eterniza-se,
         no máximo
adormece

enquanto descumpre
a condição descartável
do casulo.

6 de fev. de 2019

madeira de sustento


ao peito desengessado,
reconquistar firmeza
na articulação da maioria
das velhas palavras.

àquelas que remetem
ao teu encanto,
ainda ranger e estalar

como madeira de sustento
rangendo e estalando
ao arrepio do vento.

5 de fev. de 2019

por sua cabeça


ora a sua mão,
ora seu não.
a boca entreaberta
ainda na pirraça
de nada dizer.

puxões afoitos,
suplicantes empurrões,
enlaces
e lançamentos.

quem dera fosse hoje
o dia a me querer.
quem dera
nos tocasse
carlos gardel.

agarrado


coceiras &
          comichões
estomacais.

não se trata de fome
e nem seria o caso
de comer umas
          unhas.

atrás de mim


o tempo corre em disparada
atrás de mim
enquanto gargalhando
eu sempre escapo

tá pensando?

agora só sou meu
pensamento

4 de fev. de 2019

desfale-se


levando em conta o veneno
que me trouxe à extinção,
o soro
          único
                    possível
a restabelecer em ti
a minha vida
          talvez ainda exista

                    e seja o justo
          extremo oposto
"tenho tudo pra dizer-te"

articulado sem quaisquer artifícios
pela mesma boca tua
que igualmente tem carecido
          desfalecer.

3 de fev. de 2019

o desengarrafador de vazios


a realidade a afogar-lhe
enquanto escorre como é:
líquida volátil
ainda que volumosa.

que até torna-se útil o convite
para desengarrafar
vazios.

aproveita então todo esse estado
para também desinundar-se
daquilo que for possível
com o pretexto de fazer algum estoque
do lenitivo para tanta sede expirada.

2 de fev. de 2019

1 de fev. de 2019

distrato de tordesilhas:
eu fico com uma
e a outra comigo fica
—as duas, tuas virilhas.

a criatura na fornalha


ao tentar contabilizar
quantos deuses
teve o homem que criar
enquanto barro,

isto concluiu
a criatura na fornalha:
deuses
como o diabo.

invasões hemisféricas


que significado pode ter
um sonho que convence
ter habitado nova casa
de tão demorada e aquecida a estadia
naquele
naquele
abraço?

respondi nada,
a não ser despertar
abrasado.

31 de jan. de 2019

manual de pesca por benjamin franklin


toque em frente!
solte a linha!
debique!
cruze!

não é parado no mesmo lugar
que aquele raio lhe cairá
uma segunda vez.

clara evidência


abrigo que minha mão improvisa
para seus olhos
contra claridade tão intensa.

          o resto de mim a suspirar
          unicamente
          pelo frescor azul
          de sua sombra.

e até a luz
—ante a menor e mais ligeira
distância entre os nossos
          dois pontos—
acumulando preguiças
para cumprir o traço.

veja,
até a luz...

29 de jan. de 2019


para a perda fazedora de distâncias,
          distância!
perder-se é para um lugar chamado
          dentro do outro,
entre a febre
e o vocabulário da pele...

27 de jan. de 2019

bendita ave desocasionada


eu apenas exerço buracos,
nunca algo menos digno do que isto.
o futuro, sim, é quem faz
a digníssima colheita dos alcances.

por sua vez, o amor
—esta tão desocasionada ave—
continua sendo aquele muito primoroso
plantador de alturas.

     quanto mais convictas raízes tem,
     mais fluente em metros
     consegue se sagrar.

quem sabe então eu possa estar certo
ao pensar que os buracos na terra
têm lá suas feições de ninho...

pois agora eu quero exercer
—mesmo à visita das ocasiões incertas—
tudo que for a vontade das mudas!

26 de jan. de 2019

o plantador de alturas


                         para Flora

nada quero colher
de tuas mãos,
pequena,
a não ser teu afago à terra
e as alturas que o teu cheiro alcançará
— ambas coisas a me erguerem de mim.

bic fatal


a ignorância estabelecida
flexibiliza leis de proteção ambiental
pra só depois se dar conta
que está bem no meio
do meio
ambiente
tornado banal

25 de jan. de 2019

doublet no. 2


vida
vila
viga
vaga
vala
vale

aliens


sendo desta terra,
vivendo nesta terra,
com que sensatez
é possível poetizar amor ante
tanta gana
tanto sangue
tanta ira
tanta lama?

malícias


tanta cerca assim é
          proteção ou
curral?

não se encurrale,
faça um ringue,
lute!

nem se abata,
pegue a ponga,
fuja!

mais vale o jogo de cintura
de sutilmente se manter na luta
do que se perder por um cinturão

18 de jan. de 2019

epitáfio


quando some a fome de fama,
só a arte te aplaude.



          de arte
          ainda hoje
          morre-se.

missivistas


se tivesse que começar a chover
—como se começa uma guerra—
e dentre todas as outras fosse eu
a gota mensageira eleita para dar
o primeiro sinal e sabendo que tu
jamais anunciarias chuva dizendo
apenas "vai chover" e porque eu
quero demasiadamente que todas
as pessoas extasiadas com o teu
anúncio te associem para sempre
a tudo que diz respeito ao céu
então eu
escolheria bem
     a tua mão poeta
                         para pingar.

paradoxo da deficiência


toda ausência também é um corpo estranho
invisível para os anticorpos.

          completamente cegos,
          resta-lhes matar o que é visível.


assim nasce a saudade,
esta doença autoimune
          jamais catalogada.

17 de jan. de 2019

melisma sobre um milissegundo


tudo estreito
e vagarosamente
sendo.

uma ponte
a passar
sobre um rio
que nunca passa.

um rio
que por ser só fio
ainda está decidindo
se é mesmo mar que quer.

15 de jan. de 2019

a cama


o que são as idades
ante esta suspensão de tempo,
onde nossa juventude volta à soberania
e habilmente escapa
às rugas
destes lençóis tão inúteis?

ar no mínimo
frio em cativeiro
o inverno no cio

14 de jan. de 2019

distante do centro de tudo


quando deixei de ser barulho
e em tudo a delicadeza
fez-se ouvir

até o universo
          em curtas cirandas
deixou escapar
aquela voz de prisma
decorando os nomes das cores.

deus,
a brincar só,
          ainda criança.

ensaios sobre a gravidade (onde nem tudo é tão grave)


1.
das sementes de árvores
nascidas em árvores
algumas somente
têm por destino um chão

2.
a arte da árvore
vai consistir
—caso não saibam—
em para o alto levá-las

3.
quase todas as aves
dentre as nascidas em árvores
são as próprias sementes
de dispersão

13 de jan. de 2019

fogo espontâneo


eu poderia contar
os detalhes de nossa festa
mas quais são e onde estão
as palavras que tenham passado ilesas
pelo fogo espontâneo
de nossas danças?
para o tempo


passatempo bom é um passeio
b e m    l e n t o

jogos


quase sempre perco
—e estou sempre devendo.
quase nunca acerto,
por isso os chamo
de azar.

nem acredito
quando dou a sorte
de acertar

e acabo ganhando
bem mais do que devo

          rifa bingo loteria
          dados roleta
          poesia.

11 de jan. de 2019


deitar-se no leito do vento

ressignificar a natureza do voo

saber da ternura
          todo seu potencial de asa

10 de jan. de 2019

apreço


sei que preciso apreçar o meu passo
e sei que parado
ele não vale nada.

          de que vale a chegada,
          de que vale o caminho,
          perto de quem faz valer meu cansaço?

resta e convém apartar o que sinto
e apertar o meu cinto,
folgando alguns laços

que o carretel nunca foi infinito
mas inda é de graça
e sem pressa o compasso.

9 de jan. de 2019

satisfação marginal


amar pode ser bom, mas aquele sexo
indigente que consumamos
sob a marquise do banco
à sombra da fome
onde moramos
eu não sei
se é instinto
ou desespero
—eros se quiser
que dê alguma satisfação.

eu fino


já estou esparramado faz tantas horas
sobre estas finas areias azuis
que nelas já me sinto fino,
nelas já me tinjo azul.

sem vento,
sem areia no olho,
eu mesmo já não me olho
nem sei que horas são.

aqui nada mais acontece
e até parece
que o tempo acabou.

e eu já não pareço estar vivo
e vivo não pode estar
quem é pó
no seco abandono
desta ampulheta parada.

8 de jan. de 2019


shhhhhhh
no mar
o sol
se apaga.

marcação que não desmarca


toque-toque-toque
eu tamborilando
no meio da praça
do seu pensamento

toque-toque-toque
e você reclamando
culpando o relógio
pelo toque lento

toque-toque-toque
não sou tique-taque
quem toca lembranças
não tá preso ao tempo

nos rastros dos pilatos


pra todo indigesto
resto nosso de cada dia
a mosca imitava o mesmo gesto
crente que de nossos podres se livraria

7 de jan. de 2019

uma bravata diplomática


para este ano
me prometi
paz...

por isso,
venho aqui me render,
pra logo acolá eu mesmo me libertar.

agora é torcer
pra que esse impasse
não gere maiores conflitos.

mecânica da crise


eu já investi
ações
em minhas próprias aflições

e já sofri
          de alívios
                    em atraso

resumo:
até quando ganhei,
mais perdi
do que ganhei

6 de jan. de 2019

2 de jan. de 2019

nós sobre nós


enterrar algo
jogar algo pra debaixo do tapete do mundo
pode implicar também em plantar algo
dar a algo a suficiente chance
de ser eloquente, não antes
de seu silêncio ter feito
raiz

daí então o desconsolo contemplativo
de perceber o quanto é frutífero
o céu sobre nós
e o quanto há de terra
em nós mesmos

coaf coaf


um pigarro toma posse
bem no meio do discurso
de tosse