29 de jan. de 2018

de gesto


abri eu mesmo meu peito
cortando-o com a mesma faca
com que me abriram a boca

e o meu peito
--à sua maneira--
falou todo o necessário

e minha boca
--até hoje calada--
ainda busca o que assimilar

26 de jan. de 2018

talhado


desgraçada sina
a do espantalho que enamorou-se
justo por quem haveria de espantar

mais desgraçada ainda
por vê-la --avezinha-- se aninhando
em ninho de palhas que suas
nunca serão

23 de jan. de 2018

22 de jan. de 2018

a areia e o olhar


antes mesmo que minhas areias
insistissem em deixar pegadas em teu mar
foram tuas ondas que passaram a me visitar
chegadas sempre de surpresa
mas sempre a chegar

e sempre surpreendendo
por bagunçar minha completa bagunça
a ponto até mesmo de no fim me arrumar

viver tragado e encharcado
passou a ser a minha constância
logo eu que sou feito dos fragmentos
de inconstâncias todas

passei a ser íntimo do sempre
e das surpresas frequentes
de quem fui aprendendo que
o sempre é sempre surpresa

21 de jan. de 2018


o tempo corrói as paredes
onde penduro relógios
feitos pra suavizarem
a crueldade do tempo

o tempo corrói
os próprios relógios

18 de jan. de 2018

porte


liberto
minha morte é não ter asas
ou não haver caminhos
que me queiram

cativo
--vislumbro céus--
minha esperança
eu trago em asas

17 de jan. de 2018

16 de jan. de 2018

atmosfera


o sol se joga em feixes fortes
ventos refrescam do calor picante
celestes cores fluem nuas desnubladas
e até ouvir boas marés chamando ouve-se

tudo é bem vindo
às vezes algo míngua
mas só vai faltar verão
se primeiro faltar clima

13 de jan. de 2018

espaço


de certa forma
a saudade era de si
e daquele exato lugar
onde podia soltar-se e
--em total soltura--
ser aquilo que é

a saudade era de um lugar
e a saudade era de alguém

quando passa


diz ela
que passa distraída
quando passa

verdade seja dita
distraído ninguém fica
quando ela é quem passa

quer dizer
distraídos ficam todos
todos menos ela

ela sabe muito bem
onde é que pisa
quando passa

12 de jan. de 2018

exilada/1


diante da pedra do esquecimento
depositei as últimas lembranças de mim:
raras bondades e numerosos crimes infames

e como eu me lembro disso?
--bastante oportuno querer saber--

a pedra valia muito
para eu restá-la
esquecida

11 de jan. de 2018

daninha


já bem sabia
acostumada que estava:
quando fértil é a mente
minhocas não servem
a não ser pra roubar
o lugar que é da intuição

lava


toda manhã
meu mar me chama
da cama, janela ou varanda
e eu sempre, sempre eu vou

com águas camaleoas
desbota-se em cores de céu
e me arranha rugindo suas ondas
só pra meu olhar preguiçar

manhã já entardecia
e aquela leoa na cama
que ruge e até diz que me ama
chamando e querendo meu mar
que sempre, sempre eu dou

10 de jan. de 2018


é tanto de tudo
que a gente consome
que sobra de tudo
e a gente só some

arroubo


a terra agarrou-se
de tal forma
às suas raízes

o vento se prendeu
de forma tal
às suas folhas

que até hoje
o mundo
gira

9 de jan. de 2018

trato


até quem é muito polido
tem seus momentos
de pouco se lixar

regalia


zoologiquei-me
e quase me queimei
só pra ganhar pipoca

submeti-me a adestramentos
inscrevi-me nas gincanas
e entre bons e maus bacanas
me senti engaiolado

é que a bicharada além dos muros
canta e dança as liberdades de seus mundos
sem contar que é poesia

7 de jan. de 2018

mediano


vivo quase sempre
entre dois imensos:
altíssimos voos
e mergulhos profundos

o que tenho quase sempre:
apenas os meus pés no chão

6 de jan. de 2018

à venir


já não contava passos:
ouvi-la pedir “espere por mim”
fez do andarilho um contador de sóis

ainda sabia
--olhos fechados--
onde estava o poente
mas não se orientava por isso

mapas e estradas
perderam utilidades
quando seu peito tornou-se
avenida para o tempo correr

4 de jan. de 2018

limpidez


especulações ruem mercados
especulações forjam guerras
especulações matam gente
no lugar de especular
transpareça
ou esqueça

o achado


nunca tenho tudo em mim
os espelhos sempre mentem
e se dão a me esquecer algumas partes

perdido
não é o espelho que me acha
nem me revela a parte em falta

o achado
é descobrir porções de mim
quando não eu mesmo inteiro
espelhado bem na alma de outro alguém

3 de jan. de 2018

casulo


troncos e galhos e folhas e seivas
se espremendo por caber em si
até restar-se flor erguida

e só assim
poder morar inteiro
sob as asas tuas
borboleta

1 de jan. de 2018

natural


quando tua água me descobriu
descobriu também minha sede
descobriu-a para mim e para ti

para quem é feito água
os caminhos não são forçados
não há pagamentos para transpor

são traçados desde quando ainda dormem
tanto as águas como as sedes
cursos fáceis --e desconfio forte
que alguém facilitou muito mais este meu--

porque não precisou ser vendável
bastou ser simples, de graça
bastou ser desvendável
e ela me descobriu