28 de fev. de 2018

afeito


demonstração
de afeto em falta
é fato: afeta

suspiral


é pelos ventos que eu converso com meu mar
e comparado ao que ele diz, não falo nada

sopra
em minha espiral existência ele sopra
eu nada faço -- o meu sopro é para dentro

consortes


se neste chão
os passos parecem
ser sempre em falso
vamos falar então
de pássaros

e muita sorte
pra quem a vida
asar

27 de fev. de 2018

core


é quase perfeito o maquinário
que vocês alcançaram
e posso até invejar quase tudo
que vocês possuem

só não invejo
--pelo contrário
até consigo sentir pena--
a carga pesada que têm que levar
no lugar onde fica o peito

que triste deve ser pra vocês
ter que carregar aí dentro
--pobres humanos--
um coração

via


até no meio de um engarrafamento
eu vi o destino passar
num trânsito de olhares
ele olhava ela a olhar pra ele
ela ia de carro
ele ia na fé

25 de fev. de 2018

segundas


quando só restam
as segundas intenções
qualquer papo de segunda basta

24 de fev. de 2018

colhido


teu vermelho atrai teu touro?
nunca! é sempre o touro
--impetuoso, indômito--
que atrai teu corpo
toureiro vencido

e é justo isso que te dá
teu tom vermelho
rubor moral

aceite
ao fim de tudo
tradição pede sempre traição
e assim o mundo avança
o vencido sendo vencedor

22 de fev. de 2018

relay


“o que eu digo
não se escreve”
mas quem se atreve
a me reler?

cruas


vista o corpo, se quiser
quanto à alma, não insista
que veste nela se sustenta?
mas quem há de alcançá-la com a vista?

fosse alcançada a alma nua
ou forjaríamos em fuga uma nova cegueira
ou abraçaríamos enfim nossas verdades cruas

21 de fev. de 2018

20 de fev. de 2018

algoz


acostumei-me tanto
com minha própria
invisibilidade
que --olha só pra mim!--
até faz sentido aquilo que dizem:
eu não me enxergo mesmo

decantação


descentrei-me e findei por
dispersar-me aos quatro cantos.
derramei-me, aferventei-me
até que muito de mim evaporou

agora vem dali daquele longe
a nuvem que tem andado
a me tapar os ventos
e a compor o meu mormaço

mas vem voluntária
--sem o auxílio de brisas--
pra pousar sobre a mão de pedinte
que estendo clamando por reintegração

e decantar
dela o que há de mim
ou de mim o que sempre foi dela

19 de fev. de 2018

sacos vazios


se eu quiser me apoiar no passado
dou de cara com o nada e desabo no chão
se inventar de contar com o futuro
o destino é inseguro e eu me deixo na mão

o que me põe de pé
são as pernas de agora
nunca os sacos vazios
que ora vêm, ora vão

contato


sempre há risco de incêndio
em aparelhos elétricos
incluindo teu corpo
incluindo o meu

17 de fev. de 2018

efeito caudal


já eu, mestre Maneco, estou quase certo
fui aparelhado não só pra gostar
mas praticamente pra ser

no caso, não passarinho
mas cachorro, de raça qualquer
quase um típico cão
abestalhado, besta, bocó

não exatamente contente
e por isso não propriamente um canino
por causa da falta da cauda

e faltando um rabo pra eu balançar
é que quase vivo eu mesmo
sempre balançado

16 de fev. de 2018

o afinador de pontes


por falta de ofício melhor
fez-se afinador de pontes
e acabou por se esbarrar
em um achado imenso:

diferente do estabelecido
essa engenharia
não diz tanto respeito
a alturas ou a distâncias

quem fortifica o elo
entre as duas pontas
é o tom preciso
e a sintonia certa

escancara


não são as marcas de expressão
que vão conseguir dissimular
aquilo que está na cara

assim


estava tudo tão assim
que sequer conseguia sonhar
nem mesmo quando ao dormir

amargo ou fraco


mal havia decidido desistir
--“oh, trabalho ingrato!”--
de tentar traduzir as almas
e já se via emendando
outra igual insanidade:
tentar traduzir borra
“o café” assim dizia
“é mais claro que poesia”

15 de fev. de 2018

cabeceira


das infinitudes é o território
entre os cabelos que te abrigam
e a sola do mundo que teu pé movimenta

ainda assim, parece (às vezes)
que a tua vida habita os desabrigos
ou que falta muito mundo pra o teu pé mover

olha a bússola
que na cabeceira
te orienta

aponta ela para novas casas
ou indica pra teus rumos
um novo par de asas?

14 de fev. de 2018

em frente


chorava sem se conter
(menina em frente ao mar)
um choro tão apertado
que nem mesmo o mar se via

diante de coisa tão bela
não havia mais nada a fazer
mas coisa que nunca se viu
é mar cego
de tanto chorar

12 de fev. de 2018

instruções para descarte de coisas


coisas líquidas
para serem descartadas
sejam primeiro congeladas
depois quebradas em partes
que possam ser lançadas longe
separadamente

sendo sólidas, enterre-as friamente
sendo gasosas, engarrafe-as
--sem jamais respirá-las--
e descarte as garrafas

estando viva
não hesite em deixar
antes de tudo
a coisa morrer

caso seja você a coisa
mantenha-se coisa aquecida
e lembre de procurar não sofrer

derretemos
derramamo-nos
que pareciam maquiagem
as tatuagens que borramos

11 de fev. de 2018

arre dores


o tolo poeta
estacado sozinho
num gomo distante da terra
acha que assiste ao namoro da lua com o sol

incontestável é o fato:
a terra arrodeia o sol
a lua orbita a terra
e o poeta circula só

10 de fev. de 2018

linguagir


de teus pontos geográficos
minha língua mapeia
teus sotaques e dialetos
teus espasmos onomatopeicos
e a proparoxítona sílaba
em que todo clima culmina

9 de fev. de 2018

só minha


peguei emprestada
qualquer avenida
por onde passassem
os blocos da vida
sempre em construção

na ponga de frevos
de trotes, de axés
refresco e me fervo
fingindo ter tudo
mas sem nada ter

de mim vestida e só minha
--e, olha, nem fui eu que quis--
nasci numa fantasia
de um dia, de qualquer dia
te achar pra então ser feliz

8 de fev. de 2018

cadentes


imóvel
estatelado
costas coladas
no ventre da terra

temendo que o mundo
desmoronasse inteiro
sobre si e sobre o céu
onde pousou pés, mãos
e coração

7 de fev. de 2018

contragosto


o que vejo [desolado]
não consigo desolhar
o que escuto [nem discuto!]
já não dá pra desouvir

entretanto
não é tudo que eu engulo:
fecho a boca, eu até cuspo
e se desce goela abaixo
dedo em riste
mando sair

6 de fev. de 2018

claramente


os abismos falam

mesmo quando
às chances de pontes
eles se calam

ainda assim
abismos
sempre falam

5 de fev. de 2018

imperfeito


rumávamos ao alto e de lá
voraz e suavemente
eu te empurrava
vezes e vezes

e a cada empurrão
--olhos fechados--
voavam tuas asas
e voava minha alma

a altura é relativa
as asas são relativas
até o empurrão é relativo
só nosso voo era absoluto

4 de fev. de 2018

embora


estranho um tanto
quando levam a sério
o que escrevo nestas areias

nem mesmo o mar leva

o que escrevo
o mar inclusive
é quem leva

realidade


fui me meter em terras
que imaginei abstratas
acabei preso inteiro:
tudo tudo é concreto

3 de fev. de 2018

en passant


se o homem planejar espalhar
plantações em solo lunar
sugiro que plante apenas flores
daquelas que falam pelo cheiro

desses dias escuros
quase não se viu brotar poesia
mas flores e cheiros, dizem, podem fazer
brotar e chamar luz para os dias

e mesmo que isso não aconteça
mergulhados ao fundo
de noites silenciosas de luz
os cegos poderão ainda assim
ouvir seu cheiro passar

2 de fev. de 2018

em vão


abriu-se um largo vão
no lugar onde os sentidos se abrigavam
durante temporais e chuviscos
de horas não marcadas

do vão do desabrigo
os sentidos já não se vão
porque qualquer hora que seja
também não aparecem mais

ao menos agora
dor parece ter deixado de existir
a não ser a invisível dor de nada sentir

a máquina dos sentidos
nem mesmo ela
ali se abriga mais