23 de abr. de 2018

ontem


o dia de ontem chegou
e eu sabia, sim, que poderia
chegar.

mas o dia de ontem já passou
[é verdade]
e ainda assim
tarda, sim, em passar.

diário de um mínimo


um titã que dorme
após dar seus únicos
três passos lentos.
assim é cada um
dos meus dias.

viver, portanto, consiste
em colecionar dorminhocos colossais.
sobreviver, em não ser pisoteado
por algum deles.

eis aqui o problema
[que é inteiramente meu]:
a lentidão de meus passos
e meus bocejos famintos de sono
são coisas igual e terrivelmente
gigantescas.

20 de abr. de 2018

soterro


"desaba em salvador
grande chuva"
diz o povo
da terra

"salvador atravessa
gigantesco céu"
diz a gente
das águas

13 de abr. de 2018

içador


guardem isso:
poesia é bengala.
é sempre manco o chão
onde poetas pisam.
nunca derrubem o chão!
o mundo nunca se apoiaria só.

12 de abr. de 2018

vocabular


eu, que
já te dei minha palavra,
dou-te agora todas:
as que inventei,
as que usei à exaustão,
as que te fizeram vir,
as que te fizeram ir
--pra que retornes
quem sabe
por outros verbos--

até aquelas todas que
brilhantemente
vestiram minha vaidade
com trapos de mim,
entrego-te.

e, mudo, venho:
sopra em meus ouvidos
as palavras que o teu silêncio criou
só pra mim.

11 de abr. de 2018

migratório


fui nascido de muitos partos,
passos e partidas.
só uma me pariu,
mas até hoje nasço.

não há ramos
em minha genealogia, há rotas.
todas itinerantes as minhas raízes,
filha das cartografias a minha certidão,
papel em branco esperando
a escrita do chão
os meus pés.

eles invocam um destino
para sua sola e seu solo,
mas ainda ignoram
quais pegadas haverão de parir.

o canto delírico


“dane-se tudo!”
sabia que era amor
e corria e corria e corria
que as pernas tremiam
e valia pois era o amor
e corria e doía e sangrava
e era um ardor mas que justificava
e escorria e caía e mancava
o amor era o algoz na boca promessa
“mentira! era amor, a terra esperada!”
jurava, na plena agonia jurava

e não chegava, chagava, e até enxergava
o mar ser molhado por um pranto prata
e ouvia chamando do mar um canto sirênico
nadava, afogava, nadava e mais nada

e no fim de tudo
tudo danou-se

10 de abr. de 2018

atlantes


partiram-se como se partem
e se perdem dois continentes
após seus olhos
terem deitado entre si
um oceano como muralha

é sabido: o tempo é curador
desta galeria onde estão expostos
como arte os passageiros do mundo

mas, a despeito dos tempos e eras,
só há naves ou navios
que possam partir
quando o destino
deixa de ser
um não-lugar

9 de abr. de 2018

cafofo


o amor é coisa fofa
pra quem fica
pela superfície
das paredes de fora.

mas pra quem adentra e penetra
e se demora em suas vísceras,
o amor molha e pega fogo,
tem sabores, dissabores
arranha, aperta, aperreia, apnéia
e, tudo bem, até pode ser
--pelas paredes de dentro--
pra quem apalpa
coisa fofa

barro oco


devagar com o andor
que o santo
é barroco

8 de abr. de 2018

specchio


coisas ditas
só para agradar,
coisas omitidas
(ou mentidas)
só para não ferir.

e isso que agora
você me diz?
como saber
o que reflete?

vida coleta


o lixo
sempre passa
na hora em que estou
um lixo

teima a vida em demonstrar-me
que sempre há chances
e até certo charme
em se erguer pra reciclar(-se)

7 de abr. de 2018

petit


das pretensões de menino
que nunca tive,
piloto de avião e príncipe
continuam fora da lista até hoje
por meu medo de alturas.

mas teve o dia em que
fui deitar-me na aridez do deserto
e no deserto fui acordado.
e não sei se era raposa
não sei se era rosa
aquela que me acordou.

sei que me viram voar
e era em grandes altezas
e era ela que reinava.

amanhã


hoje
eu vivi mil dias.
só hoje.

amanhã é um dia
que não tem nome.

4 de abr. de 2018


juízes de qualquer tipo
sempre inflamam as torcidas.
hoje eu só quero não perder o juízo

a barca do sal


cala-te, homem!
já basta o teu gestual
a atrapalhar
a paz marítima.
isenta-te ao menos
do gesto verbal
e reconhece que é vencida
enfim tua serventia.

nunca foi de águas
--de margem ou marinhas--
aquela barca estacada de sonhos
de que falavas
em pleno delírio

o sal
incrustado em sua proa
era do infértil e promíscuo solo
onde ela primeiro ancorou
criando raízes.

nunca foi tua aquela barca.
portanto, cala-te, homem!
agora és distração apenas nossa,
não mais da barca do sal.
conta-nos e desenha-nos estrelas
mas não te iludas:
nossas galáxias nunca serão tuas.

3 de abr. de 2018

cromo


do céu
basta-me
um copo de luz
para eu chover cor
pelo corpo

tesereft


eu não sumi
eu só fechei os olhos
pra que sumisse todo o resto

admito:
de quando em vez
dói(-)me ver

ventura


bela,
encontrou-o
e encontrou o belo nele

como quem encontra
nas estrelas e nas nuvens
as formas que dão cores
às infâncias e aos amores.

bela,
seus caminhos são das buscas.
nuvens e estrelas que se esforcem
pra encontrar os olhos dela
se quiserem ser beleza.

2 de abr. de 2018


eu sou a mão erguida
esperando sua vez na fala
mas mãos não ouvem

estrangeiros


de minha janela
que desde sempre teve
aspirações aeroportuárias
vejo chegarem
--silenciosas e invisíveis--
as naves que me secam a cara
com seus bafos frios estrangeiros
trazendo nadas, mas revelando poeiras

depois, vem a troca de turno

hora das naves partirem
não mais tão silenciosamente,
já livres de qualquer translucidez
porque levam condensadas as cinzas
--até então dispersas e impercetíveis--
tripuladas por gritos pressurizados
fazendo de quem fica
alguém de si
sem nação

1 de abr. de 2018

virada


com a inusitada força
que aparece sem agendar
e não avisa a hora da partida
tornou a erguer
o mundo inteiro
apenas com seus pés

e reergueu-se

idades


quando digo "te amei"
não quero dizer que
deixei de te amar

se digo "te amei"
—e te amo—
isso quer dizer apenas
que este amor
criou idades

banais


temos poemas pra todos os gostos
para uma infinidade de datas
e os mais variados temas
versos para o dia do direito
(para o do torto também temos)

só não temos tempo para o lírico, o profundo
e outros bons gostos de altas apostas
mas se criam o dia do gosto
(gosto, que é igual a... bem sabes tu)
garantimos escrever mil tonéis de bosta