17 de nov. de 2008

em claro


se me convém
gastar as solas da esperança
e lhe engrossar as coxas
e constatar que mesmo assim ela não cansa
passo adiante

deito ao convés
mirando estrelas embaladas
regidas por marés
pelo oscilar que minha nau sofre do mar
(é pela espera...)

e, pela espera, até agora estou aqui
contando as rugas que o pintor riscou no mar
(e quantas rugas separando nossos portos,
e tantas valsas balançando os astros tantos!)

e assim, além de compilar do mar as rugas
vai meu saveiro coletar corpos celestes
que se abandonam atraídos pelas águas
cadenciando e reluzindo a minha espera

28 de out. de 2008

encontro calado


tal como nas noites escuras
de um céu que parece baldio
e esconde o maior desvario
(a lua e o sol consentindo
rendendo-se sem composturas)

assim somos nós em meus sonhos:
o amante devoto e sua santa.
mas Sol logo acorda e levanta
trilhando de novo o caminho
voltando aos seus dias tristonhos

22 de out. de 2008

tratado contra a antipatia


a antipatia, sendo irmã da indiferença
não se adestrou lá nos pilões da cortesia
gesto mais puro, o mais gratuito e o mais singelo
não sai da face nem dos lábios sem ser duro

que a timidez esteja atenta e sempre pronta
a defender-se com as armas de sua tez
seja, o sorriso, um distintivo mui augusto
no livramento mais sagaz de um mal juízo

se ainda assim forem banidos os felizes
do reino alegre em que é perpétuo o bom festim
façam, de graça, um cerco forte aos antipáticos
e com caretas lhes gargalhem de pirraça

20 de out. de 2008

um mundo a esperar


o mundo a esperar
nascer ou morrer
no espelho das mágoas acesas
nas águas barrentas e errantes
um mundo nascente
de imagens avessas

supõe-se paciência
quando é letargia
na espera e na lenta agonia
a lenha que move esse mundo:
dois braços cruzados
de um ser moribundo

e o velho poeta
qual grão-marinheiro
enfim, rasga o mar e o minera
dissonando do próprio futuro
do canto que o guarda
de seu velho mundo

***

um mundo a espera
de outro mundo porvir

9 de out. de 2008

casa de barro, costela de adão


quem vê de fora a casinha
com suas cortinas fechadas
mundo pequeno ao redor
mal sabe o que guardam
suas telhas, suas portas

há quem aposte nas lupas
pra decifrar as minúcias
e desvelar as miudezas:
aposta perdida
engano certeiro

mundo gigante por dentro
céus, dimensões siderais
juntem um mar de lunetas
e os olhos (só dois)
não vêem os finais

quem vê de longe essa moça
quarto em janelas cerradas
vale pensar no infinito
cabendo no mundo
que a mente inventou

25 de set. de 2008

náufrago da tua luz


ai de mim se essa estrela me deixasse de rir
nada valeria o mar... navegá-lo sem guias?
os horizontes seriam fantasmas nas noites
o vento, amoladas unhas pra minha ruína

o tempo a cerrar-me em meus sonhos (ou ilusões)
completaria seus ciclos sem nem me avisar:
os marcos passados quais cicatrizes nas nuvens;
os que estão por vir, passagem silente das mesmas

um náufrago... com todo o corpo abraçando a terra
mil léguas distante do mar, imerso em secura
cativo das vazias noites, seria assim
ai de mim se me deixasse essa estrela de rir

7 de set. de 2008

mal-entendido


me diz que tempo eu tive
pra te querer mal
se o que eu tive de tempo
me fez querer mais

reclama que o que eu falo
não dá pra entender
mal sabe que o problema
sou eu em você

você foge das trevas
eu fujo de mim
eu tento ser cortês
e acabo chinfrim

não sei onde é que eu erro
mas não tento mais
retiro o que eu não disse
não me leve a mal

17 de ago. de 2008

dois sertões


dois sertões, um só destino
borbulhando pelos chãos
rasga o sol nas contramãos
o futuro de um menino

inocência ou desatino
não! malícia não é, não!
quem viveu na escuridão
cega ao brilho matutino

dois sertões, um desafio
e a promessa de vingar
o que o sol teima em queimar
horizonte por um fio

siga em frente rente à via
dos que alcançam o amanhã
e arremede a nota vã
que essa vida te assovia

dois sertões, um coração
e o desejo de voar
de ter que se aventurar
por amor ou por paixão

2 de ago. de 2008

cara espantalha


foi quando eu cansei de tentar atrair
pus o meu ponto final em destaque
desmanchei meu ataque
forcei-me a sair

foi logo ao virar espantalho de olhares
vendas nos olhos, cortinas fechadas
me despi das fachadas
calei meus cantares

me veio uma chuva que eu não esperava
feita das garras de gata selvagem
me roçando a coragem
que em falta já estava

de mim que restavam só palha e farrapos
príncipe tolo de um reino bufão
transbordou solidão
no vale dos sapos

26 de jul. de 2008

febre norturna


cenários pintados no vento
bares, boêmios, paixões
sonhos que servem de alento
cantiga em violões

os medos convertem-se em risos
frouxos, que explodem pro céu
pés desprendidos dos pisos
um são e um pinel

desertas prosseguem as ruas
densos, os rios da ilusão
brasas da tez seminua
ardentes ou não

não seja uma esquizofrenia
pinga mineira ou a morte
vista na breve alegria
que chegue e se aporte

22 de jul. de 2008

sob encomenda


diz com que cara você quer que eu saia...
que personagem vai querer que eu seja:
um belo amante que te ama e deseja
ou um qualquer que não é de sua laia?

o papo muda a depender do gosto,
troco o tempero de acordo co'o trato,
não obstante estar no meu contrato
"por trás do pano, sempre o mesmo rosto"

sob encomenda, serei todo seu
até o minuto predeterminado,
quando desfeitas todas as suas máscaras

e revelado o teu oculto 'eu'
(assim recuo meu pobre ser quadrado
me confiando nos sinais de Bháskara)

4 de jul. de 2008

a adriça e o estandarte


arco-íris de três cores,
foi um céu que riu pra mim
com candura e paz de querubim,
adocicando os meus mil dissabores

me encharque em tua alegria
e me ofusque em luz solar;
mire em mim co'os olhos de angorá,
dê-me alcançar tua nobre estrela guia

sendo tu, porém, bandeira
a bailar no campo das princesas
leve e distinta sobre qualquer eira

eu não temo em te furtar:
trago-te meu ouro e minhas riquezas,
e o peito em fogo pra te flamejar

9 de mar. de 2008

faca e foice


eu quero ter a faca
que corta a língua dos que julgam
furar os superegos
y alto decir: ¡vida no es juego!

rasgar a animalia
dos que -- moldados pra ser gente --
consentem co'a agonia
e vão nas vias das serpentes

e eu sonho usar u'a foice
tão amolada quanto as línguas
e entrar na mesma lista
dos que, o rumor, deceparei

enfim, nós (mutilados)
regressaremos ao começo:
no reino do silêncio;
porto em que o caos fez-se endereço

5 de mar. de 2008

recreios juninos


enfim chegou aquele dia
enfim chegou a minha vez
bigode a lápis fez cosquinha
nossa camisa era xadrez

chapéu de palha me espetava
e aquela calça incomodando
gravata doida que apertava:
caixa de fósforo e um pano

mas melhorou quando lhe vi
-- com várias pintas e duas tranças --
compartilhando a mesma espiga
e me sorrindo em nossa dança

23 de fev. de 2008

pelos buracos

imagem de Richard Alexander Caraballo ( http://www.flickr.com/photos/minusbaby )


espiava pelos panos
pelo orifício dos trincos
de onde se via um mundo louco
parque da mente em que reino e brinco

tropecei em belo tombo
fui para dentro da cena
daquela cena fiz quilombo
palco dos sonhos de almas obscenas

por acaso ali entrei
passos em falso arrisquei
e fui ouvindo loas surdas
prata que paga audácia absurda

e uma chave enfim trancou-me
dentro da cena forjada
com minha pele escancarada
para os buracos das fechaduras

15 de fev. de 2008

que é de iracema?

imagem de Leonardo Jiménez Quijano: http://www.flickr.com/photos/crleonardo/

será, iracema, tua sina o pesar?
pois que, de novo, te vi ao relento,
entregue às ondas e aos tapas do vento...
foste largada por teu ceará?

parece que o segredo da jurema
-- traído pelos corpos em afã --
'sconjurou pra essas terras de tupã
o maldito torpor tepacuema

e trouxe à tona a sombra em falso amor
de pobres raparigas que, ancoradas,
esmolam, com seus corpos, um declínio

uma forma de sentirem-se amadas,
uma escolha que dilui teu fascínio
e faz toda tua sina ser de dor

12 de fev. de 2008

teus sertões

imagem adaptada de Angela Meurer: http://www.flickr.com/photos/anginhamm

se vi o que vi,
por que não vieram?
se assim prometeram,
por que não voltaram?

pois, por onde fui,
sinal tava verde,
as vacas mais gordas
e as águas gentis

cá perto aninhava
serena a asa branca,
lá longe cantava
feliz o assum preto

mas, triste, Rosinha
seguia a esperar
aqueles que um dia
cantaram regresso

e a seca, que outrora
fendia esse chão,
achou nova terra
num coração só

13 de jan. de 2008

moça de lá

Adaptado de Cezar Martins (http://www.flickr.com/photos/czrmartins)

dançava eu
vestida em mi'a saia rodada,
mas se saia
não era pra tu que eu dançava

dançava sorrindo
sim, dançava...
mas meu riso era parte
dos passos que eu dava

olhava pra tu
(não, não nego)
é tanto que, de tanto olhar,
gravei-me em teus sonhos

mas, nêgo bondoso que veio do nada,
não vê que é besteira querer tanto assim?
o riso e a dança são pra batucada
e o meu coração já é do Arlequim

11 de jan. de 2008

coração furado

André Taveira (http://www.flickr.com/photos/andretaveira/)

ai! coração morno...
que não sabe se fervilha
ou se termina frio duma vez

em plenos dias em que o sol se demora em fugir
e o vento arde quente em maresia

dias em que se vê a cidade se agitando
e o barulho mais e mais aumentando;
dias em que novas caras brotam
e as cores começam a variar
(revelando velhas raças)

o negócio é cá dentro...
aquela malemolência
aquele marasmo
aquele inverno

campo vasto sem um pé de vento
não ouve-se o eco nem do pensamento

êta, coração enferrujado...
tá feito panela furada
que não sabe o que é ferver?