30 de dez. de 2020

a caravana dos invisíveis


a caravana dos invisíveis,
que se infiltra em todas as línguas,
que alastra olores e rumores,
que intercepta silêncios,
que murcha visões

a caravana dos invisíveis,
que espalha cântico e fogo,
que apaga medos e velas,
que afaga velas e vagas
e que sacode aviões

a caravana dos invisíveis,
que cruza hemisférios,
que atravessa nações,
que invade bairros,
que corta minha rua, minha porta

a caravana dos invisíveis,
refugiada mais que meu suspirar
e que agora já não sabe se jaz ou o que faz
por trás dos muros fundos
dos meus pulmões

17 de dez. de 2020


peito perfurado     fui
 pela semelhança
tirar da fonte
por que nascente
   ela e eu
não.

3 de dez. de 2020

voyager 1


agulha pra bússola?
qual o sentido?

depois de ter me desprendido
de qualquer réstia de magnetismo,
minha meta era pegar a primeira saída.

falta-me nada. bastam-me apenas
uma agulha própria pra tocar,
    de Chuck Berry a Bach,
    o que estiver no disco
e umas fotos lá de casa
—só para o caso
de implicarem comigo.

só.

e só
se ficar no vácuo
não for mesmo
meu destino.

voyager 2


falta muito?

19 de nov. de 2020

era braço de mar adentrando
por onde o rio vinha,
tanta fluidez a meio sal,
ondas fecundando com ilusões brancas
as convicções dispersas de salitre e ar
e era tudo tão invisivelmente caos.

da lambida na terra,
o pé no chão.
linguagem em sedimento,
sede sem comoção,
paragem.

e veja-me agora:
foi só olhar pra trás,
virei pedra.

12 de nov. de 2020

argos


só um
o percurso

apesar dos mil caminhos.
e ninguém chegou
a tempo

à verdade sob seus narizes.
não pela rota com que alcançou-a
aquele sobre o mirante mais vil de ítaca:

ares a trazerem algo
    o âmago que nunca trai
        o quase doce de um passado
            não fosse o passamento do faro.

22 de out. de 2020

opuntia littoralis


é tão água.
nem sempre é igual.
não assim trajada
pra ritos de rio.

um rio todo dia
é um outro. mais ainda
no sertão. mais ainda
nesta espécie de sertão.

palavra é tão rio.
mas rio envelopado
em cacto tácito
de explícito espinho.

8 de out. de 2020

un


do fundo uma radiação
um rumor de borboletas
ecos ecos de un quando
eras
o não oco
do casulo

24 de set. de 2020

tempomar


o tempo parece pouco
para propor um manifesto.

a uma altura dessas, plantar
recomeços é uma ideia
que se dispensa.

ao mesmo tempo, é muito cedo
pra querer colher vitórias
contra a gravidade.

mas lentamente
e um tanto alto
a jubarte salta,

faz todas essas coisas

e só depois despenca.

6 de set. de 2020

de itapuã


de itapuã,
do pulso fraco
do vulto do farol,
erguem-se sempre
as noites e os dias.

da pedra inaugural,
itas litorais.
da selva de corações,
salvação à salva
de pedras.

quando a constatá-la me imbuí
make it new
antiga a novidade já era:
itapuã dita.

2 de set. de 2020

a sampana fez o rio


talvez o tal
divã oriental
para esses ais
tão ocidentais

não deixe deitar—
leve a deixar
pelo leito levar.

19 de ago. de 2020

crônica e centimetral


sou tão veloz
quanto um cedro.

se um dia eu chegar
a ser grande,
que eu chegue lá vivaz
e que esse dia não termine cedo.

suas


lembre-se, ser que flutua:
sendo eu um ser de raízes
fixei-me em si como na rua
fixa-se o caminho dos felizes.

suas asas ao encontro
de outro alento (mais ligeiro
eu diria até mais perspicaz)
vão. sem teto o meu tronco.

à casca crua restam pousos passageiros
e o temor de ter talhadas as iniciais
não nossas, suas.

14 de ago. de 2020

engenho


passarinho pousado
de lado me espia.
nem desconfiança
nem ousadia.

só gestos de escuta.
certamente um catador
de concertos faltantes.
pouco barulho o espanta.

veio catar-me o silêncio de agora
(o único em mim
que aprendeu a voar)
mas por que nunca os de antes?

num fundo escuro
de café ou carménère
'star mais acesa do que é

11 de ago. de 2020

jenga


palavra alçada ao topo
desequilibra pelo peso pela
falta

não era pra ser jogo
mas joga
tudo
no chão

3 de ago. de 2020

seres


ao amanhecer os deuses
caem no sono
dormem o dia inteiro
e uns sonham
sonhos

incontroláveis
e incontornáveis
como todos os sonhos
como todos os seres
com que sonham

ao mesmo tempo
em que do outro lado
dos contornos dos sonhos
tais seres de fato incontroláveis
somos

2 de ago. de 2020

aquilo que foi


aquilo que foi
dito ouvido sentido
durante o breve sufoco
que intervala um suspiro
pondo sentido no que estava oco

atravessou maus mandatos
sobreviveu a mil surtos
mesmo estilhaçado o próprio pacto
e dissolvidos alguns dos efeitos

segue inscrito
mais do que dogma
como um estigma
da verdade e do tempo.

31 de jul. de 2020

pistas


dobramos com o tato
a esquina do mundo.
migalhas de dia fartando
pra todos os lados do prato

vasto marinho profundo
afundam saídas por nós preteridas.
preferimos por ora ser ora
perdidos, ora o próprio labirinto.

a noite
com todas suas pistas
não pode não ser
pra famintos.

30 de jul. de 2020

saídas


restou à flor
descomplicar o verbo
do meu verso

restou a mim
conversar
com meus botões

aos meus botões
restou florir

25 de jul. de 2020

flor de flores


quero contigo
um passeio
ao centro
da flor

de flores margeadas
por alvas espadas
de bem-querer.

numa das margaridas
de mário de andrade,
o tempo suficiente,

quem sabe até tarde,
onde todas as horas do mundo
viessem nos ver.

22 de jul. de 2020

belezas corais


posso de novo ir a fundo
lagostas, ouriços, enguias

mas nunca mais me confundo
algas, corais, cantorias

se é real, até pode ser isca
caranguejos de bancos de areia

se for sonho, porém, não belisca
estrelas, medusas, sereias

à sombra do tempo


a correria da vida segue comigo.
a sombra dos ponteiros mantém,
mesmo no escuro frio, seu galope vivo.
já a pressa de viver, essa correu de mim

desde que as nuvens anunciaram
que mais vale a vida de quem planta chuvas,
deixando ao tempo a colheita dos rios,
dando à sede o controle dos níveis.

ninguém sozinho tem sede e mãos pra rio inteiro
e a pressa em disparada agora segue longe.
mas mesmo longe a pressa dá sinais
de ainda estar com suas presas em mim.

20 de jul. de 2020


pairando, flui sem ser chuva;
fluindo, consola sem ser um paráclito.

"quem me dera o contrassenso desse rio"
digo eu, diria heráclito.

17 de jul. de 2020

15 de jul. de 2020

a correção da paisagem


eu,
tornado
o grande lago

corrijo-me,
tornado
a esquerda margem

corrijo-me,
tornado um tornado
para ser das margens
catarse

corrijo-me
e de tanto que me corrijo
vou-me tornando o antepassado
do quase.

10 de jul. de 2020

substâncias do sono


não fosse sonho
seria nada

ou seria encontro de matéria
para além do que orquestraram nossas mãos

e não precisaria estar arquivado
em meu inventário de inexistências.

9 de jul. de 2020

exceções da gravidade/3


a palavra para
a saudade do mote
é glosa.

para
a de linhas cansadas
de súbitas
quedas,
prosa.

a palavra para
a saudade do ouvido?
boca (colando-se
ou calando-se,
mas sempre fazendo história).

no entanto, a palavra para.
enquanto é a palavra que sente saudades,
esvoaçam palavras da própria memória.

6 de jul. de 2020


imprecisas divisas
entre a minha fome
e o que precisas

limites obscuros
entre o que queres
e o que procuro

difusas fronteiras
entre o pé da fruta
e a fruteira

5 de jul. de 2020

longínquos


o paralelismo suficiente das distâncias
mas um qualquer estrabismo
para a desistência de infinitos
tão longínquos

3 de jul. de 2020

exceções da gravidade/2


cumular-se:
uma tendência de tudo.
mas e a manutenção dos abismos,
de que escavadeiras dependem?

exceções da gravidade


do teu pescoço
o pingente e o cordão
por um querer vil
se enforcam

esse tipo de morte
um espetáculo
mas só porque nesse pátio
que é o teu peito

ter da fruta somente
a sombra no chão,
querer matar a fome de luz.

28 de jun. de 2020


involuntário o ato de voar
como se de asas fosse o coração

bater e bater e bater

até cansar
ou virar canção

25 de jun. de 2020


o gelo que queima mais que o fogo
o apelo que põe a perder todo o jogo

isso é tudo que eu não quero

afasto-me do que venero
alguns deuses só existem de longe

24 de jun. de 2020

no vão


vão-se as carícias
delícias, bobagens
vão-se as esperas
quimeras, vantagens

assuntos ainda intocados
gestos amiúde trocados

vão-se presenças
vão-se alguns medos
vão-se os anéis
ficam segredos

mal amanhece
cega-me como areia
falso é dizer
que encontrei-a

goteja o dia
minha ânsia desfila
ela é quem sabe
desvesti-la

já noite, enfim
flagro-a virando estrela
somente assim
para tê-la

23 de jun. de 2020

exceto eu


aqui em casa
não tem ninguém
que me ache o melhor

ou pior.
aqui em casa
não tem ninguém
que me queira bem.

mas ainda bem:
aqui em casa
não tem ninguém.

19 de jun. de 2020

cruzeiro


pela estrela do sul guiada
vai a ave noturna, soturna
na noite também escura
e de silêncios e de ventos

e eu, logo atrás, rente
com tudo que me pertence, sigo-a
apenas com meu olhar

adoçado


desacatou-se, pecou-se,
não por fruta que fosse podre,
mas justo por ter sido doce.

que sabor o não-saber?
maior sabor ainda
--sente a língua--
o de grilhões abrir.

18 de jun. de 2020

entardecida


à saudade entardecida
tomando forma de lembrança
pela memória obscurecida

talvez gotas de agora
como as gotas deste orvalho
à ramagem ressequida

deidade


nebulosa borboleta
senhora da gravidade e da leveza
onde pousas tuas asas
senão na face
da própria deusa?

17 de jun. de 2020

halenitum


age, coração!
sempre foste de coragem.
e o teu alento,
teu próprio respiro
lento.

então, age:
descansa.
coragem é tirar o traje
da tempestade para uma dança.

13 de jun. de 2020


o sítio
do ofício
sem sócios,

do cio,
do vício
e do ócio,

é meu domicílio,
é um hospício
ou já será meu fóssil?

12 de jun. de 2020

ainda que tarde


o que ainda arde
ainda arde.
ao amor pouco importa
se já é muito tarde
e até do tempo se desgarrou.

se ainda arde,
ainda arde.
e nem um inseto se importa
onde o ferrão desgarrado ficou.

11 de jun. de 2020

solas de barro


vagas luzes
tudo no caminho é turvo

curvos, os postes
revelam apenas o estado
de seus próprios pés

10 de jun. de 2020

tenho sonho de ribeirinho:
presenciar o rio a descansar,
ver a outra margem
me vencer em remadas.

9 de jun. de 2020


sou eu o mesmo pódio
aonde em ondas de amor e ódio
fogem de suas rotas
tanto as vitórias como as derrotas

26 de jan. de 2020

conversa


sobre utopias
nem mais um pio

só o silêncio
a ter ciência

dessas insânias
que são as minhas

conversas
com versos.

25 de jan. de 2020

chão frondoso


meu chão achou em mim
lugar pra crescer.
conheci de suas flores os anseios,
sondei de seus caules o apetite,
na fertilidade nos vinculamos,
nos recostamos um no outro
pelas solas dos meus pés.

não sou eu o aparador de suas ramas,
quero-o chão frondoso.
a ele eu meu apego
e é pelo apego que suponho:
nossas seguras raízes
fui eu que fixei
neste céu que daqui vejo.

16 de jan. de 2020

síngulo


é sem dor
te amar.

se ofício,
sem esforço.
feito fácil.

a dor só está
se o amor é singular:
quando estou eu,
mas não estás.

13 de jan. de 2020


o vento sopra
a ave ouve e sabe
o vento sopra a outros nortes
à ave nada cabe

mas a verdade é que a verdade
habita as brancas asas
e se expõe num espanar sem voo
sempre que o vento a ave ouve e sabe

8 de jan. de 2020


isto que você vê
é só isto que você vê
se nada mais houver
de fato para ser visto

e como saber se há?
não basta o olho abrir
o olhar requer abrigo

7 de jan. de 2020

crito


aquilo não era um falar

gritava
paria palavra
com dores de quem escreve

carne se fazendo verbo
um grito da própria verve
que a nenhum ouvido serve
mas faz a alma singrar
desertos de pele

5 de jan. de 2020


água passada não volta,
veloz é a corrente.
quem quer que algo volte,
passe
                                 na frente.

4 de jan. de 2020


ressignificar como exercício
e tornar a perguntar-me
o que significam os teus signos.

toda a matéria que já fez ou que fará
tudo que é paz e tudo que é guerra
divide a mesma cela nesta terra

3 de jan. de 2020

2 de jan. de 2020


tão dissimuladas
as palavras que a boca
fez que não disse

e tão evidentes
as que de fato não disse,
mas no fim dissidentes.

desejos de linguagem


da língua,
o lugar predileto
é o dialeto.

tateia, vagueia, passeia,
põe sangue quente na veia
e ao corpo que lhe toma
         —o idioma—
inunda e incendeia.

dessa viva paragem
faz sua roça
e o que lhe coça, longe dela,
são desejos de linguagem.

1 de jan. de 2020


cada passo
é um caminho
que eu traço

cada caminho
por mais solitário
e por mais que pareça o contrário
nunca é sozinho