30 de set. de 2018

reação em cadeia


pelo que em ti
não tem cabimento,
a ti só cabe
inefavelmente
explodir

27 de set. de 2018

mancada


ganhei dois pés
antes de saber caminhar.
engatinhei, firmei-me, tropecei.
normal errar.

mas quando estive pronto
para acertar o andar pra frente
e assim ganhar meu mundo,
acertei um tiro
no meu próprio pé.
normal acertar.

26 de set. de 2018

inquestionável


vem chegando o meu prato:
bonito, cheiroso, gostoso.
inquestionável
de tão impecável.

mas deus me livre conhecer
a procedência do alimento.
deus me salve de saber
onde e como ele foi feito.

o meu prato
sob medida para mim
é a verdade que eu comprei.

24 de set. de 2018


segundas-feiras?
amamos muitas
naquele tempo em que nossas vozes
— mudas —
desacatavam os nomes dos dias

23 de set. de 2018

vontade


é em grandes quantidades
que gosto de você.
mas como chamar o coletivo
dessas coisas que não se encontram
— como você e eu?
vontade?

22 de set. de 2018

19 de set. de 2018

a falta de um lápis para alcançá-la


o dia inteiro a esperar
e ouvir do interfone
um recado
pelo porteiro

da poesia:
“estes dias não”.

e ela nem sabe.
da janela,
é a mim que se vê.

17 de set. de 2018


difusa linha da vida
—no horizonte
ou na mão—

não revela onde vou dar.
talvez apenas reforce,
muito além de onde estou,

quem não sou.

16 de set. de 2018

senda


feita de fogo e solidão,
nada parece resistir perto de mim
nem eu resisto à companhia
de quem em mim não perece.
enquanto eu dou hábito
à solidão que me consome,
acabo eu mesma
desnudando tudo o que sou.

13 de set. de 2018

o espelho de vênus


ouve, menina, as vozes de tuas irmãs
que vêm de dentro das trincheiras
para onde foram
depois do tempo de caverna.
também teu coração,
não foi para caverna que ele nasceu,
nasceu terra fértil para as flores.
mas antes do jardim, trincheira.

ouve essas vozes de mulher,
porque dessas vozes que tu ouves
--zumbindo em eco no fosso do teu peito--
quer nascer a tua voz.
tua voz salvará teu mundo.
salvará também o meu, homem
cego. que o que me resta de intacto
sobre o ego em farelos é a esperança
de ver um eco de mim em teu espelho.

ouve, mulher.
tua trincheira está pronta pra florir,
que florir é mesmo esta batalha.

10 de set. de 2018

tapa


oferecer-te a face?
nunca.
não aquela que queres,
não a tapada
com o que te agrada.

a face verdadeira,
eu já te disse:
se queres,
é tua.

mesmo que seja
para outro tapa.

o dia que impalpável nos apanha


engana-se o tempo.
ontem é um dia
que perdura

repousado
já sem asas
nas costas da mão.

rio de dentro


no meio da travessia,
no fundo do meio do rio,
uma prece pela cessação,
o findar de orlas que sejam rasas.

o peso líquido do mundo,
dali, garante-se suportar.
ali até a luz é líquida
ao se dar de beber
e nunca nunca
turva o que se vê.

9 de set. de 2018

uso


então enfim era pra dar-te utilidade?
talvez tenhamos que lamentar.
o amor é o encontro dos inúteis
ainda que os faça imprescindíveis.

8 de set. de 2018

coração na mão


por que facilmente te sujeitas
a considerar como amante ou amigo
quem nas mãos traz tanto perigo
e na alma o estigma dos poetas?

da onça


é fogo, amigo!
dividir sua amizade com a onça
que quer me cozinhar,
pra você, não pinta bem
e para mim,
é fogo amigo.

6 de set. de 2018

pela vitrine


que sabores terão
os versos que tu comes
dessa poesia que sabe meu nome?

pancada


chuva que arrasa
no trajeto a pé
do trabalho à casa.

e ver que quem chega enxuta
ao final do percurso
foi toda aquela chuva.

álea


o chão não precisa de mim.
dele preciso até para minha morte.
entretanto, é ele que me é leal:
nunca falou de meus passos em falso,
nunca se fez para mim cadafalso.

é no que não quero deixar de acreditar:
que ainda tenho qualquer coisa de chão.
calado, mesmo ao estar sob passos;
presente, mesmo para os que passarão.

5 de set. de 2018

imo


o
olho
imprime

lendas


há histórias que se contam
--que não sei os detalhes,
tenho medo de saber--
em que o monstro
horripilante
sou eu.
noutras é você.
mas não dê corda,
há contos para todos,
contos de perder a conta,
monstros em todos os cantos.

4 de set. de 2018

poesia das coisas reais


poesia é o que dá na telha.
sereno da noite, chuvisco do dia,
raios solares da tarde inteira,
e coisas reais de um mundo real:
gato no cio, caca de passarinho,
manga e a seca folha da mangueira
e pedras. e pedradas. jogadas
se o telhado é de vidro.

de frias cisões


esquece-me
de uma vez por todas.
porque a cada vez
que não me esqueces,
acabo eu mesmo
tendo que lembrar-me:

estou preso.
mesmo feito de ilusão,
sou eu que estou preso
em teus castelos
de coragens
mortas.

3 de set. de 2018

registro


museu nacional e
museu da língua portuguesa:
a ambos o fogo destruiu.

entre os dois fatos, em sp,
também foi do fogo
um prédio abandonado
--invadido, pra melhor dizer.

mas está tudo sob controle.
hoje em dia, o fogo só destrói mesmo
o que a gente esqueceu.

onde se lê, leia-se


quando me dizes
i love you,
minto
se me recuso
a dizer-te
me too

particularidade


ínfimo que sou,
a maior parte de mim
é o lugar que me tem.

partindo
--eu, partícula--
nunca parto:
sempre fica o lugar.

mas se o lugar partir,
para onde irei,
qual parte em mim
me deixará identidade?

2 de set. de 2018

imprevisto mar


e quem não acreditava mais em nada
pôde ver acontecer a velha profecia do mar
ao presenciar os olhos do cego em brilho
assim que foi abraçado por perfume antigo
cumprindo imprevista inundação
bem no solo solitário do sertão

1 de set. de 2018

nervos aflorados


em nota emitida na data corrente
o instituto nacional de meteorologia
mais uma vez repudia tanta agonia
em se antecipar para hoje
estações lá da frente
por decreto (e caprichos) da poesia

via tortas e fingidas linhas


a poesia é o caminho
mais mentiroso
pra expressar verdades.
afirma assim este
deus-lírico
em Pessoa.