31 de mai. de 2018

parla!


tenho economizado palavras
e ontem juntei as que havia
desistido de criar
só para poder usá-las
no meu primeiro
poema
mudo

30 de mai. de 2018

29 de mai. de 2018

stalker


tenho seguidores
e sigo muita gente.
sigo, mesmo desatento,
quem também me segue.
e nesse tanto seguimento
tem até quem me persegue.

meio caminho


ninho
não é lugar
de passarinho.
é só o meio caminho
entre o ovo e o voo sozinho.

28 de mai. de 2018

cientifiquês


comprovada a natureza
transcendental
extraordinária
sobrenatural
milagrosa
celestial
divina
do amor.

assim anunciaram
(tom científico)
os tradutores
de linhas
tortas.

mas ninguém
entendeu
nada.

o tempo da gente


o mundo da gente dormia
e pouco (bem pouco) importava
se acima das nuvens
de gotas descompassadas
a noite pintava-se
ou alumiava-se o dia:

no tempo da gente,
a gente criava o tempo
e a gente voltava a dançar.

27 de mai. de 2018

sacode


desejou-me “sucesso...”
(que sucesso é pra quem pode)
ao saber que o meu caminho eu seguiria

mas depois desejou-me “boa sorte!”
ao dar-se conta de quem eram
as minhas companhias

26 de mai. de 2018

comprimido


como não estar gélido
depois da dose
cavalar
de antitérmico
que aplicaram-lhe

para que pudesse atravessar vivo

todo aquele
escaldante
deserto?

24 de mai. de 2018

o que fica


o esforço para dar
passos não ruidosos
sobre as folhas secas
[de páginas idas]
sem ter que perturbar
a natureza [dos passos]
que medita sob meus pés
e também dita alguns outros
que eu devo dar.

o esforço de caminhar
é também o cuidado
com o caminho
que fica.

o alforjeiro


jurei dedicar-me a ti, poesia,
como o louco dedica-se aos seus arroubos
ou como a pedra que dedica-se à fé dos outros.

te trouxe e te trago
em meu pouco alforje
dando peso meu
à leveza tua
que é pra me permitir
voar o olhar.

e se um dia me viste
dedicado (ou distraído)
a carregar coisas outras,
é porque ali, eu juro,
de alguma forma,
poesia, te vi.

22 de mai. de 2018

invernos e versões


sempre deixas
que invernos
desfolhem tuas mechas

e ainda te abres
a versões
que transmutem teus ares

já que é dentro da casca
que habita tua seiva,
e é sobre teus pés
que o chão cria raízes

21 de mai. de 2018

transições


não virei nada,
só virei outra esquina,
despedindo a menina
e despindo-me mulher

é de você que eu me desfaço
fácil como um folgado laço
ou como um lenço jogado
a ruir o silêncio tanto
desse seu trânsito
em julgado

tarde demais
e já não se fazem
mais homens como anteontem
para as mulheres deste já

tarde demais
e em nada te ajuda
desertar desse seu júri
pra que assim me procure
numa esquina aí qualquer

19 de mai. de 2018

leito


na cama, a dama, moça bela,
afia os fios das navalhas
nas línguas dos poetas
--dos ingênuos aos canalhas--
pra depois cortar à vera
a carne rígida que a valha

18 de mai. de 2018

incorrespondências


que nem pombo-correio
desmagnetizadamente
perdido de sua rota,
a saudade se faz
informante bem paga
que nunca traz mensagens de fora
--são sempre de dentro--

notícias todas
ultrapassadas,
mas jamais
jamais
superadas.

17 de mai. de 2018

flora/1


do banho da noite,
sou eu no geral
que me encarrego.

mentira.
não dou banho,
eu rego!

tilintantes


os ventos ressecam tudo
e, para não virarem vidro,
os olhos precisam de carinho
quando faltam boas vistas.

nem que seja
das próprias pálpebras
a afagarem em piscadelas
ou proverem abrigo
em clausura perpétua.

que, cego, já nem escrevo
(não há linhas que orientem
dos versos os passos
em que me fio)

apenas canto (para preencher
os silêncios dos ninguéns),
exibo risos
(pra se tiver
alguém olhando)

e tento ouvir
o inconfundível tilintar
do raro coração que
como esmola
cai.

16 de mai. de 2018

dilatações temporais


talvez o encontre
do mesmo jeito
e no mesmo lugar

mas, tendo sofrido
tão grandes mudanças,
terá achado que também
ele mudou

rebentação


foi o que ouvi anunciarem
os habitantes de terras rachadas
para os dias sem lama:

sabedorias
difíceis de digerir
(e resistentes a toda acidez)
que travam combates intestinos
mas resistem sementes,
cumprindo sua
germinação.

alguns as perceberemos
(eles garantem)
por florirem
poesia.

15 de mai. de 2018

14 de mai. de 2018

a imprecisão do amor


sete fracassados ensaios
sobre o amor.

sete!
o número
--como dizem--
da perfeição,
mas nunca nunca
o da precisão.

a precisão dispensa ensaios
e só precisa do número
um.

enquanto era tempo
dei-me, então, ao luxo
de alterar o assunto
--e os títulos--

porque qualquer ensaio
sobre o amor
acaba descambando
em imprecisão.

ensaio sobre a imprecisão/7


é verdade duvidosa,
paz conflituosa,
fidelidade traidora,
vitalidade moribunda
e outras tantas
de muitas outras
imprecisões.

e se disserem
que é tudo mentira,
aceito e, enfim,
aliviadamente
dou graças.

ensaio sobre a imprecisão/6


é o cansaço das tentativas
e eu já não sei mais o que dizer.
amanhã é outro dia e é quase certo
que ele vai nascer com o amanhã.
mas pode ser que não.
pode ser que adentre
no infinito daquilo
que o hoje
será.

ensaio sobre a imprecisão/5


é dogma sacrossanto
provado e contraprovado,
indiscutível e inviolável,
transcrito, traduzido,
inventado e rasurado
por profanos
pecadores.

ensaio sobre a imprecisão/4


é coisa que tem dente,
mas não o de morder.
talvez seja como o do garfo,
talvez como o de pente

o de leite
ou de alho,
o da escavadeira
ou até das engrenagens

só não é o de morder,
mas morde.

13 de mai. de 2018

ensaio sobre a imprecisão/3


é rede de arrasto
que se deixa lançar,
se deixa estender
e se deixar arrastar,
mas leva para o mesmo saco
tanto a pesca
como o pescador

12 de mai. de 2018

ensaio sobre a imprecisão/2


é esconderijo
elaborado com detalhes,
bem projetado
--e inédito!--

mas que deixa
fartas pistas
para quem um dia
também já tentou
se esconder

ensaio sobre a imprecisão/1


é flecha artesanal
demoradamente esculpida,
polida, afiada e ornada,

preservada para sempre do disparo
uma vez que já cumpriu seu alvo:
atingiu certeiro o coração
do próprio arqueiro
escolhido

11 de mai. de 2018

do desplante ao replantio


e ainda
o desplante
de dar flor em pleno outono
(quando quase não há pássaros
que abriguem elogios ao fim da tarde)

depois
daquele broto
não vingado no verão.

e o desplante
de querer andar pra onde apontam
os dedos lacerados por topadas
do caminho.

o desplante
de querer
ainda.

9 de mai. de 2018

correição


a ternura relampiou no céu,
que é preciso estar acordado
pra que ela chegue de novo
e é preciso que chova
pra que ela volte a ficar

vem vindo que é tempo dela
e eu terei que fazer bem menos,
que menos talvez seja mesmo mais

que com passos largos
o caminho logo acaba

e o bom fim mesmo
parece que depende
somente do caminho

8 de mai. de 2018

grão


os suores
daquelas altas temperaturas
que molhavam a fina areia
e congelava
o tempo na ampulheta

sumiram
no frio de agora.
banida a função dos poros,
já nenhum outro marejamento
consegue fazer o tempo
deixar de correr.

7 de mai. de 2018

devolução


deus o fez cair
em sono como o de adão

ao acordar
viu-se aprisionado
em muitas costelas
todas suas

5 de mai. de 2018

exilada/2


se eu não tivesse trazido comigo
a pedra do esquecimento,
se tivesse obedecido
àquilo que era próprio fazer,
nada estaria agora habitando
o pátio das minhas lembranças
e eu seria como um neonato
à espera de uma nova infância.

seria o maior dos furtos:
furtar o tempo.
mas a mim só resta
reinventar outros jeitos
de fazer esta alma exilada
nascer de novo.

4 de mai. de 2018

seca


gosto da forma
que o teu olhar me toca
que chega me deforma

e também do jeito
com que ele me bole
bebendo-me em piscadelas
gole depois de gole

3 de mai. de 2018

páreo


não faço ideia
de como eu vim parar
aqui depois de tanto andar

não faço ideia
de como eu vim a parar

ficções


triste o fracasso
de tentar ingressar
no rol dos fingidores.
depois de fingir amar,
de fingir estar feliz,
de fingir ser triste,
de fingir sua dor,
doeu-lhe fingir.

a ilusão quebrou-lhe a cara,
mas um nariz foi seu salvador.
aquele mesmo que o expôs,
protegeu-lhe e deu-lhe o aval
de brincar sem se ferir.

e brincando de amar,
brincando de estar feliz,
brincando de ser triste,
brincando sua dor,
foi tão convicto quanto
a criança que brinca
de ser astronauta
só pra tocar o céu
sem ter que despencar.

e foi tão poético quanto
o fingidor que sempre despenca
em sua mesma dor.

2 de mai. de 2018

ati


o povo pesqueiro
não conta com o peixe,
conta com a cana
pra dar conta
da gana
e da cama.

mas onde
têm dormido
as gaivotas?

1 de mai. de 2018

seus


como não notei em sua chegada
o hálito dos tragos que,
tão recentes,
me antecederam?

comigo, iludido, o seu último gole
tragado já dizia por si:
não havia mais nada a dizer

partiu, dizia, rumo ao seu lar
--e eu acreditei que sim--
mas parecia já não saber
como lá chegar

mais adiante,
outras chances
outros copos
outros corpos

o destino final seria, sim,
a sua longínqua casa
nem que fosse apenas para partir
--seu destino sempre foi partir--

porque ainda soa bem
quando publicam:
"morreu rodeada
por aqueles que amava"